MICROSCOPIA DO OLHAR

 

Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay

A cigana leu o meu destino, eu sonhei
bola de cristal, jogo de búzios, cartomante, eu sempre perguntei
como será o amanhã, como vai ser o meu destino
já desfolhei o mal me quer
primeiro amor de um menino
e vai chegando o amanhecer
leio a mensagem zodiacal
e o realejo diz
que eu serei feliz, sempre feliz”
(O amanhã - Simone)

Dias desses essa música veio à minha mente, e também as conversas com a minha avó paterna, que sempre gostou desses assuntos esotéricos. Como sou alguém que, assim como ela, se  identifica com esse universo do “oculto”, entendo que isso influencia diretamente quem eu sou e como eu me relaciono com o mundo no qual transito.

As questões filosóficas, que mais cedo ou mais tarde acabam atravessando a nossa mente, como “de onde vim”, “para onde vou”, ou ainda “o que estou fazendo aqui” nos provocam a sair da atitude passiva de só esperar a vida passar, reclamar da má sorte, de como “tudo está errado no mundo”, e tentar sair à procura de uma resposta, mesmo que parcial e adequada pelo menos para aquele momento.

O baralho do tarô tem uma carta intitulada A Roda da Fortuna. Esta carta diz que os acontecimentos da nossa vida, sejam eles bons ou nem tão bons, é que nos fazem avançar, e isso não quer dizer que mesmo o que nos acontece e que é compreendido como um “azar”, não seja revertido mais adiante como um grande bem. Vou dar um exemplo: minha avó trabalhava em uma casa de família, e algumas vezes não tinha horário fixo para ir embora. Em dias assim, ela acabava pegando o último ônibus do dia e chegava em torno de 1h da manhã em casa. Em uma dessas vezes já eram aproximadamente 2h da manhã e a minha avó ainda não estava em casa. Meu pai estava bastante preocupado. Como na época não havia o telefone celular de forma ostensiva como atualmente, não tinha nem como ligar para saber por onde a minha avó andava. Todos já pensavam no pior. Sem saber o que fazer, meu pai resolveu ir até a parada do ônibus que era perto dali. Assim que saiu, enxergou a vó chegando. Ela explicou que acabou “cochilando” dentro do ônibus e foi até o fim da linha. Como o motorista teria que dirigir o ônibus até a garagem, a trouxe de volta sem problema nenhum. Com os corações apaziguados, fomos dormir. No outro dia ouvimos de um vizinho que próximo do lugar em que a minha avó costumava caminhar para chegar em casa, e aproximadamente em torno do horário que desceria do ônibus (caso não tivesse cochilado), havia acontecido um tiroteio entre gangues rivais. Ela, após saber do ocorrido, se benzeu e agradeceu à "bendita cochilada”.

A vó costumava agradecer a tais “livramentos”, ofertando velas para os santos na igreja católica e para os orixás na Umbanda, dizendo que nunca era demais e que era pra garantir que chegaria até o lugar de destino a intenção de agradecimento. Tinha amigas mães de santo, evangélicas, seicho-noie, católicas praticantes e “não praticantes”, garantindo assim a diversidade de abordagens religiosas que acreditava que ampliariam os seus horizontes no quesito “compreensão do não compreendido”.

Foi a minha avó, em grande parte, que despertou em mim essa busca pela espiritualidade. Sempre desejei conhecer e vivenciar aquilo que me oferece paz de espírito e expansão de consciência. Ainda mais em tempos tão estranhos que estamos vendo tantos absurdos serem considerados aceitáveis, crenças religiosas e espirituais totalmente desvirtuadas, buscando tesouros na Terra, e não em si, ou além. A segunda parte da Idade Média, talvez, com roupagens contemporâneas. Só falta queimar as bruxas, daí, eu estou “lascada”. Espero que pelo menos, dessa vez, as bruxas estejam preparadas com magias mais efetivas, de resistência e esperança, a fim de auxiliar na modificação de tudo isso, tornando o mundo um lugar mais harmonioso, lúcido e empático. Mãos (ou varinhas) à obra!


Patrícia Maciel

Patrícia Maciel é doutoranda em Educação pela Unilasalle; Mestre em Artes Cênicas pela UFRGS, com pós-graduação em Psicopedagogia pela UNIASSELVI/ RS; Gestão Cultural pelo SENAC-RS; Língua, Literatura e Ensino pela FURG, e Arteterapia pela Famaqui/RS (em andamento); graduada em Teatro- Licenciatura pela UFRGS. Atua como docente e pesquisadora na área de Artes e Educação, principalmente nos segmentos de artes, teatro, educação e formação de espectadores. Desenvolve pesquisa em pedagogia da Arte, processos criativos e escrita criativa. Membro fundadora do grupo ColetiveArts, atuando na área de escrita literária.


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8 Comentários

  1. Que lindo esse texto, que belo resgate da memória e da ancestralidade, meu lado esotérico herdei do meu avô paterno que gostava muito dos ensinamentos indígenas, que respeitava sua ancestralidade, mesmo muitas vezes sofrendo preconceito por minha avó que odiava que ele contasse as histórias ligadas a Tribo do avô dele, mas que muitas vezes me contava escondido como um segredo, ele que tinha o dom de curar de conhecer as plantas e amar os animais, sabendo suas funções na natureza.

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    1. Que lindo saber disso, Lais! Estes ensinamentos são relíquias para a mente e o coração!

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  2. A caça as bruxas continua, basta ver os ataques as casas de matriz africana. Ainda vivemos tempos trevosos de intolerância. Bju

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    1. Por isso mais do que nunca nós temos que nos unir e derrubar essas sombras que insistem em gerar o caos. Que voltem para o lugar de onde saíram.

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  3. Muito interessante teu texto, relembrou meu passado com meus 4 avós q eram religião afro, e disputavam o carinho deste neto ,kk,
    Parabéns pelo seu currículo academico, máximo orgulho..

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    1. Muito grata pelo seu feedback. Essas ancestralidades que nos auxiliam a construir quem somos são muito especiais.

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  4. Muito bom, Patrícia. Lembrei que o sociólogo italiano Domenico Di Massi afirmou que o Brasil é mesmo o país do futuro por conta do seu sincretismo religioso que faz com que todos os credos convivam em harmonia. O problema é que ele constatou isso há uns vinte anos, pois a ascensão ao poder desses falsos cristãos está complicando tudo. Eu fui criado como católico até a minha primeira comunhão. Depois disso parei de ir às missas para ir às sessões vespertinas de cinema com dois filmes. Muitos anos depois, já separados, a minha mãe flertou com o espiritismo kardecista e o meu pai foi estudar e praticar a umbanda. Atualmente respeito todas os credos mas não professo nenhum, a não ser um senso de espiritualidade fruto de estudos, em que mesclo fé e ciência. Pero yo creo en brujas!

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    1. Muito bom, João! De fato, até pouco tempo atrás, o homem acreditava que os demônios tomavam conta do corpo, porque eles tinham febre e muitos morriam. Quando criaram o microscópio, descobriram que havia um mundo à parte, invisível a olho nu, e esses micróbios e bactérias causavam tremendo "mal". O homem crê somente naquilo que os seus olhos podem alcançar. Quero ver o susto quando conseguirem enxergar outras dimensões...kkkk...mas isso é assunto para um outro texto. Abraço!

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