ESQUELETRAS

 

A escrita como forma de atravessar abismos

As ideias são líquidas. Ao escrever, tentamos pegar um oceano com as mãos, mas ele escorre por entre nossos dedos, e o pouco que conseguimos reter é algo dele que congelamos em formas de gelo as quais chamamos palavras - tão cheias de possibilidades, mas tão sólidas para conter toda a liquidez ou muitas vezes a neblina que são as ideias. Elas escorrem por nossas mentes, correm ébrias e cegas por nossas veias, gritando sentidos vivos, os quais parecem buscar a linguagem institivamente para existir de forma objetivamente reconhecível. Então, ao sentir tal impulso de vida vindo das ideias, tentamos registrá-las e compreendê-las melhor através da linguagem, o que acaba muitas vezes transformando-as em outras ideias ou levando-as a lugares novos (o que pode ser ótimo quando, nesse processo, ganha-se algo, porém, muitas vezes, perdemos muito, pois as ideias muitas vezes não cabem inteiras na expressão verbal).

Aliás, o que da mente humana afinal cabe inteiro no mundo externo? Por vezes, penso que cada mente carrega mais do que há no planeta todo e, se cada crânio fosse aberto e seu conteúdo de ideias de diferentes realidades transformado em algo sólido no mundo real, não restaria espaço para mais nada. Quando digo ideias, me refiro àquelas entendidas como fictícias por completo e às que chamamos memórias, pois estas acabam por ser algo fictício também, elas são só uma perspectiva, afinal, apesar de terem sido "real", de alguma forma, por terem ocorrido no mundo físico. Inclusive, algo que me assombra é imaginar se tudo o que se "cria" na ficção não tenha sido um dia realidade ou  um dia será, talvez exatamente como escrito. Pense quantas vidas já existiram, existem e hão de existir, quantas possibilidades infinitas para acontecimentos dos mais absurdos possíveis (e até mesmo aqueles que pensamos ser tão impossíveis). Por exemplo, como podemos saber se, antes de Poe ter escrito sobre dois irmãos doentes morando em uma casa antiga caindo aos pedaços, e a irmã ter sido enterrada viva (desculpem o spoiler, mas se ainda não o leu, pelo menos eu não citei o nome do conto!), como saber que isso já não aconteceu antes, talvez exatamente da mesma forma? Talvez mais de uma vez? Como saber que não irá acontecer outra vez, daqui a milhares de anos? Ou será que acontece sempre, a cada vez que lemos as palavras do autor?

Penso que carregamos em nossas células algo das histórias do passado e misturamos tudo o que nos parece mais instigante para criar ficção. Se alguém imaginou algo, aquilo é real, pois a mente humana é um universo em si, o qual conecta-se e interage com o que a cerca e do qual ela é parte. Portanto, aquilo que chamamos de ficção é, sim, parte do mundo real, assim como as memórias de cada pessoa também são ficção, pois formam uma espécie de filme, de um todo gravado pelos olhos e pelas crenças de determinada pessoa. O real em si não existe, ideias particulares são subdivisões de um todo e, com a linguagem, tentamos trazer ao mundo "real" as ideias de ficções e perspectivas que assombram as nossas mentes, tentamos nos libertar através das palavras e existir por meio delas no mundo externo - as palavras são a forma como saímos de nós e tentamos chegar ao outro lado do abismo. Mas são pontes construídas por cegos - por mais belas que elas possam parecer quando em versos - ainda são pontes quebradiças. Nunca chegamos por inteiro ao outro lado do abismo, a ideia sempre se perde pelo caminho e chega diferente do que imaginamos, diferente do que tentamos explicar a nós mesmos o que ela era (às vezes, quando surge uma ideia muito boa, mas a expressão para criá-la empalidece ao tomar  forma de palavras, a vontade que dá é de quebrar o crânio e despejar a ideia, vermelha, viva e líquida, direto no papel, mas nada seria compreensível de qualquer forma!).

As palavras são fantasias que usamos para vestir nossos pensamentos, pois eles são invisíveis, abstratos, sem forma. As palavras carregam a ficção nelas, e nós as usamos para contar a nós mesmos sobre o mundo quando nem sequer compreendemos a nós mesmos por completo.

Somos como nuvens, mas feitos de sangue e palavras no interior das quais ideias pulsam com vida própria. O melhor a fazer, algumas vezes, talvez seja tentar segui-las, como se elas fossem coelhos brancos - mas as maravilhas às que elas nos levam, isso nunca sabemos como serão. Não antes de prossegui-las incessantemente, página por página.

Arte de John Tenniel para "As obras poéticas de Edgar Allan Poe, editor: JS Redfield, 1858 

Amanda Leonardi 

Amanda Leonardi  é Mestre em Letras pela UFRGS e escreve ficção. Já publicou contos e poemas em diversas antologias nacionais, colabora com os sites Nota Terapia e Artrianon e mantém a página @esqueletras onde posta microcontos de terror, resenhas e curiosidades literárias.

Para conhecer um pouco mais sobre a Amanda, escute o episódio do podcast Coletive Som gravado com ela clicando:

                   AQUI


Não percam, nessa sexta às 07:00 tem novo episódio do Coletive Som gravado com Amanda Leonardi, desta vez fazendo dupla com a escritora Irka Barrios no especial Mulheres no Terror, não percam.


04 ANOS DE COLETIVEARTS,
CONTANDO HISTÓRIAS, CRIANDO MUNDOS
Não espalhe fake news,
espalhe cultura!


Postar um comentário

4 Comentários

  1. Muito boa reflexão, Amanda. Lido sempre com essa questão das ideias e da criatividade, pois estou sempre escrevendo literatura ou dramaturgia. Tanto que na minha oficina "A Formação do Roteirista" que é on-line, dedico as primeiras aulas apenas para esmiuçar a questão das ideias. Quais as fontes? Como saber se um ideia funciona para aquele propósito inicial? Como melhorá-las? E assim por diante. Também aprecio o gênero terror (não sei já lestes o meu conto "O Congresso das Sombras" publicado aqui no Coletive Arts há pouco tempo). Venho escrevendo há dois anos um romance que mescla drama político com terror sobrenatural. Se tiveres interesse em conhecer o conteúdo da minha oficina de roteiro, sem compromissos, me contate pelo e-mail: mfproartcult@gmail.com que te envio o material. Procuro sempre quem goste de escrever, para ensinar os caminhos dramatúrgicos da escrita de roteiros. Abraço

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Muito obrigada pela leitura! Adorei a premissa desse romance, com terror e drama político, realmente é um cenário assustador, ótimo tema para explorar na ficção de terror!

      Excluir