ARTE E CULTURA


O adeus ao poeta Ricardo Mendes


O ColetiveArts está de luto, a poesia está de luto, a arte está de luto, eu estou de luto. Meu amigo e poeta Ricardo Mendes despediu-se deste mundo na madrugada da terça-feira, dia 23 de abril de 2024. Saiu de forma trágica como uma de suas poesias e me deixou com o coração dolorido e com lágrimas nos olhos e na alma que sente a dor de sua partida.

Ricardo era um poeta maravilhoso, com um texto que impactava a todos que o liam. Cronista de uma vida dura e triste que muitas pessoas insistem em não querer enxergar, Ricardo era doce, profundo e incisivo. Participou de muitos eventos do Coletive, com vídeos, poesias e saraus . Ricardo respirava poesia, respirava cultura.

Esse mundo que é desigual e canibal, que consome almas grandiosas, mas que insiste em glorificar o medíocre fez mais uma vítima. Quantas mais fará?

Ricardo tinha me feito a promessa de que viria morar no Rio Grande do Sul, e eu a de que iria buscar ele no aeroporto, não deu, meu poeta... hoje a dor é imensa. Exatamente no dia anterior à sua partida curti no Facebook  uma poesia (ou microconto ou pensamento, dependendo de quem a lê) sua:


"No mundo existem dois tipos de pessoas.

Evitem ambas."


Em sua homenagem, reproduzo abaixo a entrevista que ele deu ao Arte e Cultura no dia 20 de junho de 2021, quando havia criado o projeto Sarau carro de som, a poesia sobre rodas, um projeto que só a mente criativa de um poeta poderia ter. Até breve, meu amigo.

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Um sarau num carro de som...se alguém há alguns anos me falasse de algo assim, eu diria que estaria mentindo. Ora! carros de som contribuem para a poluição sonora, com seus "vote nesse", "vote naquele", "olha o ovo a dez reais a bandeja". Quem ousaria pensar numa ideia dessas? Quem seria tão audacioso? 

Somente um poeta poderia pensar em algo tão ousado assim, transformar uma coisa que espalha poluição sonora em um disseminador de cultura. O nome do poeta? Ricardo Mendes.


Conheci Ricardo através do bardo do underground Fabio da Silva Barbosa (um dos membros mais antigos do ColetiveArts e que atualmente apresenta toda sexta ás 18:00 na www.commusica.com.br  o programa Resistência Sonora) e, a partir dali, nunca mais nos perdemos de vista. Ricardo participou de diversos projetos do ColetiveArts, sempre levando sua palavra, seu olhar aguçado de poeta, forte, afiado, sem nunca perder a ternura ou deixar de se posicionar. Ricardo é um dos maiores agitadores culturais brasileiros, pois não existe arrogância, não existe falsa modéstia, nem egocentrismo, ele é por que é, simples assim.

A poesia de Ricardo ultrapassa qualquer rótulo ou barreira, nos conta histórias, nos tira do lugar comum e nos põe a refletir.


Quando Ricardo falou-me de seu projeto, o encanto foi enorme. É preciso divulgar, é preciso mostrar para as pessoas as diferentes formas de ocupação que podemos fazer, pois quanto mais espaço preenchermos com cultura, menos espaço sobra para fake news e para os calhordas de plantão. Conversei com Ricardo Mendes, confiram a fala do poeta:


Jorginho: Ricardo, já são quantos anos de poesia? Como surge a literatura em sua vida?

Ricardo Mendes: Opa! Excelente pergunta! Desde que eu comecei a escrever, lá com meus 7, 8 anos eu sempre via o mundo de uma forma diferente, com um certo lirismo. A primeira lembrança que tenho é de um concurso de poesia ainda na terceira série primária, onde conquistei o terceiro lugar com uma poesia sobre a natureza, papagaios, cachoeira, algo assim. Era metade da década de 80 e o colégio era imenso aqui em Niterói, Rio de Janeiro. Conseguir terceiro lugar naquele momento, acabou sendo uma vitória e tanto. De lá, tive um hiato enorme em poesia, em arte, me dedicando à labuta administrativa, aos cálculos em Excel, às planilhas e a uma série de outras coisas para ganhar dinheiro e me sustentar já que, infelizmente, não há nenhum tipo de incentivo para se viver de arte no Brasil. Nenhum.

A poesia propriamente dita, feita com certa continuidade, começou mesmo muito tarde em minha vida. Foi quando entrei no Facebook em 2008, por mais incrível que possa parecer por se tratar de uma rede social, de algo tecnológico, que a poesia se fez mais presente em minha vida, com  maior constância. Comecei a postar poesias, contos, crônicas, textos dos mais diversos, experimentos com palavras, com textos, com histórias, histórias contadas sem contexto, sem início, sem meio e sem fim, palavras separadas apenas por espaços, sem vírgulas, sem conectivos, sem nada que ajudasse o leitor comum a entender. Fiz desta uma das minhas marcas registradas até hoje no Facebook. Ano passado, eu e minha esposa e parceira Emanuele Sloboda, lançamos o nosso primeiro E-Book, o “FlashZap! Uma antologia de microcontos”.Traduzimos mal e porcamente para o inglês e botamos na Amazon pra ver se rola uma grana de gringos, mas tá difícil. rs

Os micro contos, textos com início, meio e fim (ou não) com até no máximo 300 caracteres, entraram na minha vida em 2016 através do convite para um grupo de micro contos no Facebook. Comecei a escrever os micro contos e cheguei a ganhar uma ou outra etapa do concurso de micro contos. Me empolguei, indexei todos os que eu tinha feito, ela fez mais outros e nos divertimos muito criando temas diferentes para os micro contos. Editei, produzi, criei a capa e começamos a vender pela internet. Foi bem legal. Ainda está a venda caso alguém queira adquirir. Eu vendo pela internet mesmo, a pessoa manda o PIX (21997004109) e eu incluo o nome da pessoa em um dos micro contos, personalizando a experiência além de botar uma dedicatória bem bacana também.


Jorginho: Como surge a ideia do Sarau do Carro de Som - O primeiro Sarau ambulante do Mundo? Fale do projeto, das metas que pretende atingir com ele.

Ricardo Mendes: A pandemia, de uma forma geral, tem sido um momento de muita reflexão pra mim. Eu amo saraus. Eu já frequentava alguns há um tempo mas, de uns três anos pra cá, comecei a frequentar assiduamente, ora para levar meus doces para vender, ora para vender meus quadros e objetos personalizados com minha proposta de arte pelo preço percebido, a Galeria da Estante. De um ano pra cá, assim que iniciamos este processo tão triste de isolamento, de encerramento de atividades presenciais, tenho sentido muita saudade de ouvir poesia, ouvir música autoral, divulgar, apoiar pequenos artistas.

Um dia, vendo o carro de som passar vendendo “os ovos que a galinha chorou” me surgiu a ideia de unir as duas coisas: arte e carro de som. Bolei um design legal para a imagem de fundo, pensei no projeto em alguns minutos e convoquei um pessoal conhecido primeiramente para me dizerem o que achariam de participar de um evento de poesia e música em um carro de som. A maioria achou a ideia incrível e iniciamos o primeiro grupo de artistas a participarem do evento. Foram 10 ao todo, ocupando o espaço de uma hora de evento. Eu tinha possibilidade de aceitar mais artistas mas fiquei com muito receio de haver algum problema com autoridades municipais, estaduais, federais por conta de algum tipo de aglomeração, por causa das leis mesmo. Afinal de contas, trata-se de um evento sobre rodas, no meio de uma pandemia. Tinha que ter todo o cuidado e criar um “Grande Ensaio”. Organizei o grupo do whatsapp, solicitei os áudios ou textos aos participantes para que eu os declamasse, caso assim eles preferissem e assim fluiu. Editei os áudios, trabalhei-os pacientemente para que ficassem com uma excelente edição, que ficassem bem bacanas.

Para participar é necessário entrar com um investimento de R$ 40,00 por uma cota. Esta cota dá direito a um espaço poético de até 4 minutos no Carro de Som mais a edição do áudio, produção com fundo musical personalizado, divulgação nas redes sociais e no site do Sarau do Carro de Som, com possiblidade de venda da poesia em apps como Spotify e Deezer. Trata-se de um investimento. Tudo por minha conta. Eu edito, eu produzo, eu divulgo. O site é este: https://ricvasconcellos.wixsite.com/saraudocarrodesom Ainda está em formatação mas já dá pra se ter uma ideia de como ficam os áudios tratados, com fundo, com edição e possibilidade de serem baixados mediante contribuição aos artistas, indo diretamente para cada um. Do Sarau eu só cobro os R$ 40,00 mesmo para cobrir custos. Se uma pessoa, um artista, uma banda, conseguir um apoio, alguma empresa que queira ser divulgada por todo este complexo de mídia, não importa quanto a empresa irá pagar ao artista. Eu só quero os R$ 40,00. A banda irá usar o seu tempo de cota para divulgar a empresa e o tempo continuará custando apenas R$ 40,00. Se a empresa pagar R$ 1.000,00 ao artista, eu continuo cobrando apenas R$ 40,00 do artista. É uma forma de incentivar artistas a conseguirem patrocínios, apoios, divulgações, ganhar dinheiro com um investimento, seja ele qual for. Eu trabalho no formato Ganha-Ganha em que todos tem que ganhar, ninguém tem que perder nada, ser melhor do que ninguém. Eu lucro com os R$ 40,00 por artista, o artista ganha da empresa e a empresa apoia um evento no meio de uma pandemia com divulgação em carro de som, em qualquer parte do Brasil. A meta é atingir o maior número de localidades, de artistas, de empresas, levar a palavra da poesia a todos os corações e mentes. Quanto mais arte, menos violência. Quanto mais arte, mais consciência, menos ignorância.


Jorginho: Como foi a estreia dele na Rua Ator Paulo Gustavo?

Ricardo Mendes: Há uma polêmica em relação à troca do nome de Coronel Moreira César, o “Corta-Cabeças” para Rua Ator Paulo Gustavo. Uma polêmica homofóbica em um bairro em sua maioria eleitora do Bolsonaro, conservadora, classe média alta. Eles alegam que é por causa do custo dos comerciantes em alterarem os nomes em papéis de embrulho, em documentos do comércio mas ninguém reclamou da troca do nome da Praia de Icaraí _avenida paralela à Ator Paulo Gustavo para Avenida Jornalista Alberto Francisco Torres. Homofobia disfarçada de forma praticamente declarada.

Fiquei muito preocupado no início, com a questão de produzir um evento público, na rua, de dia, em uma rua muito famosa, praticamente a Oscar Freire (pra quem não conhece é a rua das lojas famosas, lojas caras de São Paulo) daqui de Niterói. Estamos no meio ainda de uma pandemia, uma situação muito complicada de se lidar. Tomei todas as precauções possíveis, botei no cartaz do evento para que as pessoas não se aglomerem, não saíssem de suas casas, de seus apartamentos para acompanharem o carro de som. Evitei fazer muito alarde nas redes sociais, deixando a divulgação para o dia do evento. O objetivo era pegar os moradores de surpresa e depois divulgar nas redes, nos sites, na internet de uma forma geral. Depois de feito não tem como ser desfeito. E assim foi. Algumas pessoas nitidamente se assustaram com um carro levando música, poesia e não gritando “os ovos que a galinha chorou”. Umas senhoras acenaram, uma galera nos filmou, foi bem interessante. Eu estava no carro e filmei todo o percurso em uma live no instagram.

Quer ver como foi a estreia? Clique AQUI



Jorginho: Como você enxerga o cenário cultural e político no Rio de Janeiro e no Brasil?

Ricardo Mendes: Ser artista no Brasil é um ato de resistência, de heroísmo. No Rio, de uns anos pra cá, mais ainda. Ser artista no Rio, em tempos de Crivella, de Witzel é apenas para quem realmente não quer fazer outra coisa, quem inspira, transpira e respira arte, quem não consegue sobreviver sem pensar e repensar a vida, a sociedade, o mundo. Este é o papel da arte. O cenário político no Rio de Janeiro, que já foi a capital do país, a capital cultural do país, foi tomado pelas igrejas neopentecostais de tal forma e maneira que a resistência artística está cada dia mais esquecida, acuada. A minha proposta de um sarau ambulante, talvez crie uma outra consciência nas pessoas, talvez surjam novos projetos, novas ideias para veicularem seus produtos, suas ideias, ecoe em outros projetos e a arte é isso: é dinâmica.

Há um ou outro sopro de sanidade no horizonte com a possível eleição do Lula agora, ano que vem, com a aliança das esquerdas, com a retirada deste desgoverno corrupto, fascista e ordinário que manipula tudo: dados, ideias, a história brasileira e mundial ao seu bel prazer, refutando séculos de estudos, de memória humana. Um assinte !!! Mas isso está para acabar. Acredito ainda este ano assistir pela TV, a prisão desta quadrilha que ainda está ocupando cargos públicos altíssimos e de tanta relevância na república. Assistirei emocionado, com certeza.


Jorginho: Deixe uma mensagem para todos aqueles que estão lendo essa matéria e que queiram se juntar ao Sarau do Carro de Som

Ricardo Mendes: Antes de qualquer coisa: viva a arte!! Arte é resistência!! O Sarau do Carro de Som é Resistência e está aberto neste momento, para rodar em qualquer canto do Brasil.

Estamos com inscrições abertas para o Sarau do Carro de Som. Para se inscrever basta enviar uma mensagem para o meu celular via whatsapp ou ligando mesmo: Ricardo Mendes (21) 99700-4109. Você aí de Porto Alegre, das imediações do Rio Grande do Sul, entre em contato comigo que já tenho tudo montado para rodar aí. Já temos um grupo ainda aberto para rodarmos na boêmia Santa Teresa aqui no Rio. Ainda estamos com vagas também. Imagina você trazer sua música autoral, sua poesia, seu pensamento para um bairro boêmio, poético, de grande aceite de arte sonora, poética!! Basta me mandar um oi para o 21997004109 que eu explico mais como funciona melhor, tiro dúvidas, passo um cafezinho fresquinho, sirvo bolo, tudo na boquinha…rs

Se você é músico, tem banda, grupo vocal, coral, qualquer arte que possa ser ouvida, mande um “oi”, vamos divulgar da forma mais interessante e inusitada, pegando as pessoas em casa, no trabalho, gente que não precisa clicar em nada, acessar nada. Jovens, idosos, gente que nunca ouviu poesia, gente que esqueceu que a poesia existe. Gente que precisa de poesia!! Precisamos levar arte, música, poesia para as pessoas!! Precisamos levar arte aonde o povo está! Entre em contato. Vamos fazer um Sarau do Carro de Som aí na sua cidade ou levar a sua voz a outros cantos do Brasil.


Mais poesias de Ricardo Mendes:

Libertação:


Um dia Normal:


A despedida:


Quanto mais arte, menos violência. Quanto mais arte, mais consciência, menos ignorância.
- Ricardo Mendes


Jorginho

Jorginho é Pedagogo, Filósofo, graduando em Artes, com pós graduação em Artes na Educação Infantil, ilustrador com trabalhos publicados no Brasil e exterior, é agitador cultural, um dos membros fundadores do ColetiveArts, editor do site Coletive em Movimento, produtor do podcast Coletive Som - A voz da arte, já foi curador de exposições físicas e virtuais, organizou eventos geeks/nerds, é apaixonado por quadrinhos, literatura, rock n' rol e cinema. É ativista pela Doação de Órgãos e luta contra a Alienação Parental.

CINCO ANOS DE COLETIVEARTS,
CONTANDO HISTÓRIAS, CRIANDO MUNDOS!
O Coletive está de Luto!

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1 Comentários

  1. Uma perda enorme para o mundo, de forma geral. Lembro de termos falado a um tempo atrás sobre este projeto, Carro de Som, e as formas de fazer arte, cultura, literatura, TUDO através do evento. Ricardo era uma ótima pessoa! Abraços aos amigos, parentes, envolvidos, cidadãos de bem que continham com ele um forte vínculo!

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