ISSO DA UMA CRÔNICA

 

O povo do Papicu num quer papo 

Estou numa situação complicada. Recebi muitos elogios sobre minha última crônica, o que, em teoria, é ótimo. O problema, na prática, é que quase todos os comentários vieram carregados de altas expectativas quanto à continuação da história: a Larissa escreveria aquela mensagem para a vizinha? Como esta reagiria? Em último caso, seria possível uma aproximação através do gato? Acabaria rolando, enfim, o convite para um café?  

Aiai! Quem me mandou usar aquele truque do Rubem Braga no final do texto para criar curiosidade sobre o próximo? Mas agora o leite já estava derramado, a criança fora despejada junto com a água, e eu teria que dar um jeito para que a história, uma vez começada, continuasse. Ainda bem que o tempo estava a meu favor: o prazo para a próxima crônica ficava a uma distância segura de quase duas semanas. Em duas semanas pode acontecer muita coisa, inclusive a Larissa resolver seguir meu conselho e colar na janela um papel com uma mensagem para a vizinha da frente. Esperei uma semana, e nada. Fiquei preocupada. Teria que dar uma forçada na minha protagonista, ou minha credibilidade como cronista correria sérios riscos.  

Passei então a observar melhor a rotina da personagem para descobrir a hora mais oportuna para a abordagem. Logo percebi que o momento mais certeiro seria depois do passeio com Chico. Vulnerável e vitoriosa após vencer os quatro andares de escada, estaria disposta a quase tudo. Preparei a emboscada e esperei. Quando a porta se abriu naquela tarde de sábado, quatro dias antes do fim de prazo, eu já estava a postos. 

— Amor, você precisa escrever aquela mensagem para a vizinha disparei. 

— De jeito nenhum — ela tentava recuperar o fôlego enquanto livrava Chico do peitoral. — Acabei de encontrar o namorado dela na garagem. Olhei fundo nos olhos dele e disse bem alto “boa tarde”. E nada!

Me ignorou completamente! Vou escrever coisa nenhuma, num quero mais saber desse povo. 

— Mas o público quer saber! Não sou nem eu que estou pedindo, é o público! 

De nada adiantou. O argumento mortal pôs fim à discussão: 

— Você é escritora. Inventa! 



Até a entendo. Custei a me acostumar com essa característica dos nossos vizinhos.

Quantas vezes cumprimentei alguém na escada ou no caminho à portaria e tudo que recebia de volta era um olhar desconfiado? Ou nem isso. No Papicu não se cumprimenta. Não sei se essa regra se aplica à população papicuense em geral, mas pelo menos aqui no condomínio é assim. A única exceção são os porteiros, o zelador e a síndica. E os donos de cachorros. Alguns. Mas, para dizer a verdade, também esses cumprimentam em primeiro lugar o Chico e só depois, meio que em consequência e meio que por obrigação, a gente. Daria pra realizar altos estudos sociológicos sobre isso. Mas eu não sou socióloga, sou é cronista. E mais: sou cronista com um prazo; coisa seríssima. 


Já que minha protagonista havia se aposentado da história, resolvi eu mesma tomar as rédeas. Descartei a vizinha da frente ao mesmo tempo em que lembrei do casal não-antipático do segundo andar. Já haviam sorrido algumas vezes para a gente na escada, o que pode ser interpretado como um bom começo. Cinco minutos mais tarde, enfiei um envelope com uma folha dobrada embaixo da porta deles: 


Oi, vizinhos.  

Vocês querem tomar um vinho com a gente mais tarde? 

Larissa e Yvonne do 401 

(WhatsApp: ...) 


A resposta – negativa – veio pouco tempo depois, num tom formal e distante que não instigava a futuros convites do tipo.  Talvez pensem que somos psicopatas. Talvez não queiram aparecer na minha crônica. Ou talvez seja simplesmente um casal papicuense raiz. E o povo do Papicu num quer papo. 

 

 

Papicu (Fortaleza), junho de 2023

 

Yvonne Miller
Foto: 
Thaís Vieira


Yvonne Miller é natural de Berlim, mas prefere o calor do Norte e Nordeste brasileiro, onde mora desde 2017. Alemã de nascença, brasileira de alma, apaixonada pela crônica, linguista, admiradora de cactos, geminiana e muitas coisas mais. Tem crônicas e contos publicados em várias antologias e escreve quinzenalmente para a “Rubem – Revista da Crônica”. É uma das organizadoras da coletânea “Quando a Maré Encher” (Mirada, 2021) e autora de “Deus Criou Primeiro um Tatu: Crônicas da Mata” (Aboio, 2022), que reúne 50 crônicas – ora humorísticas, ora reflexivas, poéticas ou políticas – sobre sua convivência com a flora e fauna na Mata Atlântica pernambucana. Atualmente mora na ilha de Algodoal, no Pará, junto com sua esposa, gato e cachorro. Contato: @yvonnemiller_escritora

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