NAVALHAS AO VENTO

 O FRIO DOS CORAÇÕES GELADOS

É comum ouvir ou ler nas redes sociais que tem pessoas que amam o frio. Longe de mim julgar as escolhas das pessoas, sempre digo que gosto é igual a cu, cada um tem o seu, mas hoje uma pessoa me incomodou muito dizendo que eu sou louca por gostar do verão. Então resolvi explicar porque não posso gostar do frio e me posicionar diante da escolha de vocês.

Desde pequena que sinto a dor das pessoas como se fosse na minha própria pele. Minha avó brigava muito comigo quando eu chegava em casa sem toda a roupa que havia saído, era comum eu tirar uma peça de roupa e oferecer para qualquer mendigo de rua. Eu morava em frente a escola onde estudava, então naquele trajeto não tinha nenhuma pessoa em situação de rua. Mas quando ia na tia Hélia ou na tia Uca eu passava por uma fábrica de velas e lá sempre tinha alguém encolhido perto da caldeira e era neste momento que eu sentia um frio insuportável que me fazia tirar o casaco ou qualquer outra peça quente e colocar na pessoa que ali estava, vulnerável a baixa temperatura. Uma vez um rapaz estava deitado na porta da churrascaria La Cabanã , que ficava na rua onde eu morava, três casas depois da minha. Era noite e eu passei ali de fusca com o meu pai, mal entrei em casa, peguei um cobertor e desci as escadas correndo, ao chegar lá eu o cobri com a coberta e ele sorriu para mim. Aquele sorriso me aqueceu e eu voltei feliz para casa. Meu pai e minha avó me ensinavam a dividir o que eu tinha, mas já começavam a achar que era demais, pois constantemente tinham que comprar roupas e calçados para mim e éramos de família pobre, que lutava para sobreviver. Quando eu trabalhei em creche municipal, todo dia eu voltava para casa sem meias, pois tinha uma criança que ia todo dia sem meias para a creche e eu dava a minha, como também dava minhas blusas e mantas, a mãe era viciada e vendia as roupas que a filha ganhava.

Eu não consigo gostar do frio que dói, que machuca e até mata meus irmãos que estão em situação de rua. Esses irmãos que, por motivos só deles, dormem ao relento, sob marquises, na chuva, com pouca ou até sem coberta. Eu não consigo gostar do que faz mal a um irmão ou até mesmo a um cachorro, gato ou qualquer ser vivo que esteja em situação de abandono. Já chega o frio de suas vidas vazias, a temperatura baixa mata.

Eu prefiro o verão quando posso oferecer uma garrafinha de água mineral para cada pessoa que vejo sentada no asfalto quente, sabendo que esta água amenizará o calor. Mas no frio não há nada que eu possa fazer para ajudar uma pessoa. Até mesmo uma roupa quente ficará molhada de sereno e deverá ser descartada.

Quando leio no Facebook que quem gosta de verão deveria rolar no asfalto quente eu fico pensando na falta de empatia que esta frase carrega. Antes de postar que gosta de inverno a pessoa deveria dormir na calçada numa noite fria, com pouca coberta, preferencialmente numa noite chuvosa para ter a experiência e só assim poder avaliar. Gostar de inverno dentro de casa, com ar-condicionado ou lareira, comendo fondue, tomando chocolate quente é muito confortável. É o mesmo que ver a neve pela tela da televisão, mas se gostas de neve fique nela com pouca roupa e só aí poderá defender o seu mau gosto 

Na minha opinião não precisava existir nem inverno nem verão, se a temperatura ficasse só na estação da primavera, além de florida e colorida seria muito mais amena para todos. Eu não gosto do verão, eu prefiro o verão. Não gosto de ficar suada, prefiro suar a ver meu irmão sofrer de frio. Mesmo que o calor me faça mal eu não sofro o que uma pessoa em situação de rua sofre no inverno. Além disso minha religião me ensinou que não é sobre o que EU gosto e sim sobre o que é bom para todos.

Gostar do inverno é para quem tem coração gelado, para quem não exerce a empatia, para quem ignora a dor dos outros, é o maior exemplo de egocentrismo e egoísmo. O frio só é bonito para quem tem a bênção de ter uma casa, do contrário ele dói.

Isab-El Cristina Soares


Isab-El Cristina Soares é poeta, membro do Clube Literário de Gravataí, autora de 6 livros.  Graduada em Letras/ Literaturas, pós-graduada em Libras, é Diretora Cultural do ColetiveArts.

Escute o episódio do podcast Coletive Som gravado com Isab-El , clicando Aqui.

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4 Comentários

  1. É sábia essa mulher, sabia?
    Tudo verdade. O meio a meio é ótimo contra todas as temperaturas altas e baixas.

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    1. Obrigada pelo comentário e por acompanhar esta coluna.

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