UM POUCO DE HISTÓRIA

 

O Misterioso Sumiço das

Placas em Gravataí

Sabendo que esta coluna é lida em várias partes do Brasil e quiçá do mundo, afinal, se aqui no ColetiveArts eu leio autores do Nordeste e do Sudeste a recíproca também é verdadeira. Neste sentido, convém situar os “estrangeiros” a respeito de Gravataí, a cidade por onde passa a maior parte dos textos da Coluna Um Pouco de História. A origem do seu nome já denuncia a influência indígena na sua formação. Gravatá, espécie de bromélia; hy, rio. Gravatahy, rio dos gravatás. Localizada na região metropolitana de Porto Alegre, surgiu na época em que a colônia Brasil terminava em Laguna (SC), de onde vieram tropeiros e aqui foi erguida uma cruz e, mais tarde, uma capelinha em devoção a Nossa Senhora dos Anjos. Em 1763, índios sobreviventes das Guerras Guaraníticas foram trazidos para estas terras dando, de fato, início a um expressivo povoamento, onde o trabalho escravo era a base da organização econômica, primeiro a mão de obra indígenas e depois os negros (curiosamente, logo após a invasão portuguesa, todos que não eram de origem portuguesa eram genericamente chamados de “negros”). 

Até as duas últimas décadas do século passado, aqui era uma cidade com economia apoiada no setor rural, grande produtor de farinha de mandioca. A industrialização, com a instalação do Distrito Industrial e do Complexo da GM, acabou com a pacata vida na Aldeia de Nossa Senhora dos Anjos, mais tarde Vila Nossa Senhora dos Anjos de Gravatahy, hoje simplesmente Gravataí. Os seus aspectos interioranos, aquele clima bucólico tão típico das “cidadezinhas”, foi sacudido, de uma hora para outra, com o vertiginoso aumento no número de seus habitantes e a urbanização num ritmo estonteante, provocando mudança culturais significativas nos espaços urbanos e, por consequência, na memória coletiva.

Há estudos comprovando a relação direta entre memória e espaço, as consequências das repentinas mudanças  arquitetônicas nas lembranças e o perigoso terreno da implantação de “novas” lembranças. A derrubada de casas antigas para a construção de espigões e seus traços retos e sem graça, a extinção de praças para em seu lugar erguer shoppings com suas “engordantes” praças de alimentação, as pedrinhas coloridas portuguesas que antes, com seus desenhos em forma de onda, nos traziam mais perto da praia, decorando as calçadas do centro, hoje foram substituídas pelo frio e monótono concreto cinza. Até mesmo a Rodoviária, prédio com mais de setenta anos, foi derrubada literalmente, da noite para o dia. Teve gente que passou embaixo da sua marquise no fim da tarde e, no outro dia de manhã, só encontrou escombros. Que loucura!

Estas mudanças tão rápidas, eu diria até mesmo bruscas, no espaço urbano certamente tonteiam qualquer “aldeão”, abalando a memória individual e coletiva. Quantas famílias se despediram ou se encontraram na Rodoviária, quantos casais de jovens apaixonados marcaram de encontrar na praça, ao lado do Monumento do Expedicionário ou se beijaram à sombra do carvalho plantado pelos alunos do Barbosa Rodrigues, em 1927, ou as crianças que andavam pelas calçadas, pulando de uma “onda” a outra nas calçadas de pedrinhas coloridas...

Entretanto, além deste aspecto perturbador da brusca mudança de identidade da nossa cidade, que rapidamente perde suas características peculiares, engolida pela especulação imobiliária e pelos novos negócios, neste processo de “macdonaltização” que procura tornar todas as cidades do mundo iguais, ou melhor ainda, todas uns imensos BigMacs, há uma simples e pura destruição de tudo o que é velho, ou lembre um passado de aldeia. A situação chegou a tal ponto que propusemos um projeto de exposição cujo título já é uma provocação e uma denúncia no mesmo pacote: “Gravataí, fotografe antes que acabe!”

Interessante que estas mudanças não passam por uma cuidadosa discussão com a população, são aprovadas de roldão na Câmara de Vereadores, cuja maioria dos “edis” está na mão do prefeito, comprados pelos cargos oferecidos aos seus correligionários em troca de apoio, em muitos casos, incondicional. Aqui, nesta aldeia, ainda há uma triste e real piada em que vereadores deram de presente de aniversário ao prefeito uma placa de acrílico com suas assinaturas se  comprometendo a votar favoráveis ao projeto de reforma da previdência do alcaide, antes mesmo de ser apresentado e discutido no plenário da Câmara de Vereadores. Para se ter uma ideia do nível desta maioria de vereadores de Gravataí, vaquinha de presépio perto deles tem mais personalidade.

Outro aspecto não menos perturbador é a fabricação de novas memórias, ou melhor dizendo, de um outro passado. No dia 17 de agosto, dia estadual do patrimônio histórico material e imaterial, um debate permeou os discursos de autoridades municipais e representantes da sociedade civil, numa cerimônia no pátio de um casarão com arquitetura açoriana em processo de restauração, onde membros da institucionalidade oficial exaltaram a cultura açoriana, alguns chegando a dizer que “todos somos açorianos” (não é bem assim, “cara pálida”). Entretanto, alguns membros do Conselho Municipal de Cultura e do Projeto Irmãs TM lembraram que a formação cultural gravataiense possui a contribuição de indígenas e negros, ambos escravizados pelos civilizados europeus (ingleses e portugueses, principalmente). Hoje, cada vez mais se discute o apagamento sistemático de alguns grupos humanos e sua contribuição cultural, ao mesmo tempo em que ocorre a exaltação da arquitetura, culinária, danças, músicas, religião, patrimônio e memória de povos de origem europeia, erguendo-se monumentos em sua homenagem. Lembrando o grande poeta e dramaturgo Bertold Brecht, aqui parafraseio o seu maravilhoso poema Perguntas de um Operário que Lê:

Que mãos construíram os casarões açorianos da minha Aldeia?

Qual a cor da pele dos que ergueram as igrejas bicentenárias da minha Aldeia?

Quem abriu as ruas e as estradas antigas da minha Aldeia?

Quem pavimentou com pedrinhas coloridas as suas calçadas?

Para onde foram os trabalhadores que tudo isto construíram?

Para os porões?

Para as senzalas?

Para o cruel esquecimento, afogados nas sombrias águas da história oficial?

Tantos relatos, tantas perguntas.

Um exemplo emblemático desta mudança do passado pude encontrar quando pesquisei, ao participar do maravilhoso livro “Gravataí, entre anjos e gravatás”, sobre praças e parques. Deparei-me com uma situação no mínimo insólita: não encontrei a placa de inauguração do Parcão. Fiquei intrigado, afinal lembro da inauguração e do descerramento de uma placa cravada em uma pedra para registrar o evento, com a data e o nome do prefeito da época. Estranhamente, tal placa e a dita pedra não encontrei. No seu lugar havia uma outra placa, colocada num pedestal de tijolos, onde constava outra data e o nome de outro prefeito. Enlouqueci ou estava vivendo em uma realidade paralela?

Para você que não vive em Gravataí, pode pular este parágrafo, já quem conhece a Aldeia há mais tempo, sabe que em 19 de dezembro de 1999, na administração do prefeito Daniel Bordignon foi inaugurado o Parcão. Acontece que o prefeito Marco Alba, em 2016, inaugurou uma reforma no dito parque, descerrando a sua placa comemorativa. Ocorre que ao não encontrarem a placa descerrada em 1999 as pessoas pensam que o prefeito criador do Parcão foi Marco Alba, assim na memória coletiva ocorreu um apagamento do nome do verdadeiro criador e a sua substituição por outro. Quem disse que não se pode modificar a História para as novas gerações? Nossa percepção da História é descaradamente corrompida por estes que, ao retirarem os registros históricos como as placas e os monumentos, procuram criar um outro passado.

Por falar em placas, já reparou que as dita cujas sumiram de diversos monumentos da praça central de Gravataí?

Sobre o misterioso sumiço das placas nos monumentos das praças, quando não é o próprio monumento que some, alguns amigos chegaram a cogitar se este não é um caso para o Detetive Oswaldo, protagonista das cinco novelas que compõem a série As Aventuras do Detetive Oswaldo. Penso não ser este um simples caso de investigação policial, na verdade é um sintoma do descaso do poder público com o patrimônio histórico e cultural da nossa “aldeia”. A privatização da praça central, com a criação da Rua Coberta, que fecha suas cortinas de metal às 23 horas e só abre no dia seguinte, às 11horas, demonstra, na prática, tratar-se de uma Rua  Privada, provocou a retirada de monumentos da praça. Alguém aí lembra do Monumento ao Expedicionário? Ou da placa colocada ao pé de um carvalho, pelos alunos da Escola Estadual Barbosa Rodrigues, em 1927, cuja professora era Aurea Céli Barbosa, nome de escola na Aldeia e cujos alunos tornaram-se ilustres gravataienses? Uma curiosa coincidência: Agostinho Martha, pesquisador que dá o nome ao nosso museu, que aguarda urgente reforma, consta como um dos alunos de 1927 e um dos gravataienses que participaram da FEB. Quer dizer, constava, porque não existe mais nem o carvalho, quase centenário, muito menos a placa e o monumento ao expedicionário. Sumiu tudo!

As placas, quando não retiradas, são uma rica fonte de informações históricas e preservá-las é preservar a nossa memória, afinal se perdermos a memória de quem somos e de onde viemos, perderemos também a nossa identidade, porque o nosso passado nos diz quem somos e, nesta viagem que é a vida, ninguém vai sem bagagem, não é mesmo?


NESTOR OURIQUE MEDEIROS


"Quanto mais arte, menos violência. Quanto mais arte, mais consciência, menos ignorância."
- Ricardo Mendes

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4 Comentários

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    1. Triste verdade, mas Sócrates é Jesus já diziam que a verdade liberta.

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  2. O texto "O Misterioso Sumiço das Placas em Gravataí" faz uma crítica à rápida urbanização e transformação da cidade de Gravataí, que tem apagado marcos históricos e alterado a memória coletiva local. Através de um tom nostálgico e indignado, o autor descreve como a cidade, originalmente com uma forte influência indígena e uma economia rural, sofreu mudanças drásticas com a industrialização e especulação imobiliária. A destruição de prédios antigos, como a Rodoviária, e a substituição de placas e monumentos históricos ilustram como o passado da cidade está sendo apagado e substituído por narrativas fabricadas. O texto também expõe a falta de participação popular nas decisões que moldam o espaço urbano e denuncia a manipulação política que colabora com esse processo de apagamento.

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    1. Muito obrigado pelo teu valioso comentário que só reforça o descalabrio em que vivemos.

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