Por quem toca o sino
Chegou sem ser convidado e de ânimo aventureiro, praticante de uma espécie de brincadeira de esconde-esconde, não autorizada pela administração local. Espalhou coisas pelos cantos, afastou a mobília, mexeu na decoração, olhando tudo com espírito empreendedor, cheio de projetos. Confiante na própria estratégia, foi se fazendo conhecedor aos poucos, explorando caminhos recônditos e vãos imprecisos, desapercebido da vigilância, focada na produção intensiva e de mind set antigo.
Precisava desdobrar-se em suas habilidades miméticas, desafiar repertórios. Soube manter a medida em seu caminho errático, aprendendo na hora certa formatos, cores e a linguagem do lugar. Incentivava a si mesmo com objetivos factíveis, razoáveis. Tinha de ser assim, pois o senhorio era previdente: todo ano fazia ronda geral, investigando o ambiente pelo olhar incorruptível de máquinas especializadas e detectores de última geração, apalpando tudo com auxílio de mãos estudiosas. O malandro conseguiu driblar esse aparato; estabeleceu-se, progrediu.
Só após passar pela emergência do hospital, em quadro de incômodos e inchaço do ventre, feitos exames de alta resolução, é que o penetra deu ar oficial de sua graça, recompensado da própria peraltice. Mesmo sendo um câncer (portanto vocacionado para a destruição) apresentou-se com ares de bom moço, sem causar todos os danos que poderia. Nesse momento revelou-se negociador hábil, propondo acordo geral de sobrevivência, apelando para interesses corporativos. Surpreendido pela nova condição de paciente, consegui regatear a proposta, arranquei-lhe abatimento reservado a sócios: de algum modo chegamos a entendimento.
Desde então o levo para passear comigo em minhas idas a consultórios e agendas de saúde; dividimos momentos na alegria e na tristeza, irmanados no hábito de viver, ocupando o mesmo lugar no espaço. Sabemos que não precisamos fingir amar sinceramente um ao outro, mas temos a certeza de que respeito é bom e ajuda a saúde. Minha mulher, sempre firme ao meu lado, ao saber desse meu companheiro íntimo não demonstrou ciúmes de posse, nem economizou palavras de amor e gentileza. Ambos não expressamos mais reservas de futuro do que o estritamente necessário, dançamos a música nos compassos do presente.
Tenho aprendido muita coisa com esse sujeito: os códigos de corredores de hospitais e das salas de espera, o cuidado solene na escolha das palavras dos médicos, a dedicação das enfermeiras e auxiliares, o reinado arbitrário do acaso. Nas histórias escritas em rostos de meus semelhantes, leio espanto e coragem de quem perde cabelos e cultiva esperança. Vejo aprendizes de novos movimentos e as pausas impostas a velhos e jovens, unidos na recusa em desistir. Mais do que monitores coloridos e bolsas de líquidos viajantes, paira sobre todos a promessa da remissão, bela palavra que designa a superação da doença e o fim do tratamento. A chegada a este limiar sagrado é comemorada na clínica em forma de toque de sino, como pude uma vez presenciar. O som vibrante de metal atravessa silêncios e paredes. Por instantes anulam-se todas as diferenças, na fé comum de que a vida seguirá, abrindo novos caminhos.
Paulo Malburk |
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