DEAMBULÂNCIAS

 Em fogo brando

Enquanto cozinho, difícil dizer qual o melhor pedaço. Todos me dizem respeito: são antigas lições de gerações há muito desaparecidas, incorporadas ao processo de fazer. Por isto acredito nas receitas: mesmo quando inventadas por outros, elas serão sempre nossas, exatamente porque se convertem em realidade por nossas mãos. Uma espécie de religião, cujos rituais se valem de ingredientes temperamentais, de inconstantes medidas baseadas na fé (o que significa “uma pitada” ou “uma porção”?) além de tempos dogmáticos de espera. Isso exige muita paciência e acatamento aos poderes do fogão. Mas ao final, se tivermos sido fiéis, tudo poderá ser compensado, quando a transfiguração dá certo e o prato alcança salvação.

Eu mesmo só derivei para esse reduto, ou melhor: só me converti por conta da pandemia de 2020 e seus efeitos colaterais perturbadores. Assim como eu, muitos optaram por cuidar de plantas, virar ioguis, limpar obsessivamente a casa, estudar línguas exóticas – e até cozinhar. Precisávamos descascar esse abacaxi, enfrentar esse angu de caroço, segurar essa batata quente que foram aqueles anos terríveis, enfim. Essa variedade de exemplos mostra como podemos usar cores e sabores a nosso favor. Sem mencionar que saber e sabor guardam parentesco íntimo entre si: deve ser por isso que refeições são momentos decisivos de encontro e de revelação.

Aperfeiçoar-se nessa arte implica percorrer graus de sabedoria, como quem visa um tipo de nirvana – só que ao contrário, feito de luxo de sentidos bem treinados para conferir prazer. Cada formato das peças, o próprio desenho com que as mãos moldam a natureza (bruta? Não é justo dizer isso diante do capricho desenhado de um brócolis, por exemplo). Deve-se ter cuidado para verificar se o ingrediente está uniforme, fresco, saudável, praticar uma sindicância de tatos e de cheiros, atenta à mínima variação. Depois todas essas sessões de partes e postas feitas por vez, em tempos próprios e adequados, viram lascívia desordenada, uma mistura de consistência variada, onde elementos vindos de locais inesperados da terra encontram-se carnavalescamente dentro de uma mesma panela, em puro fato consumado, antes de serem consumidos.

Quando era pequeno, a avó dominava o território na cozinha – “aqui não é lugar de homem”. Não me sentia diminuído, pelo contrário. Como se fosse uma sutil provocação, a curiosidade desafiada, esperando uma primeira oportunidade que surgisse, mesmo que anos depois, como de fato acabou sendo. Não deixou de ser uma forma de inflar o ego daquele projeto de homem, ainda muito cru para perceber o prazo de validade de tudo que existe. O que eu queria mesmo era admirar as coisas sendo manipuladas, enxergar o momento de revelação da matéria, no espanto de descobrir que também somos dissolvíveis. Contemplar as mãos que davam forma e criavam alma em pastéis, suspiros e sonhos, vivos no sabor. Ser também um sacerdote desse culto, capaz de encantar pelo íntimo das entranhas. Depois levar aos outros mortais a mensagem dos deuses, e então esperar que implorassem pela misteriosa receita.

Sobem lembranças com o vapor da panela. Apesar das diferenças é o mesmo ar das tantas gerações que já viveram, de milhões de coisas juntas, todos os lugares em um só. Um planeta-caçarola feito de coisas cruas ou mal cozidas, de ternuras e de cruezas, sem receita pronta. Então penso se minha avó não estará também na panela em que agora mexo, fazendo história em meio a tantos ingredientes de vida que me cercam. Não me surpreendo com esse pensamento tanto quanto canibal, tenho a certeza de um afeto entranhado: é impossível separar memórias, corpo, espírito, transformando-se em eterna alquimia. Mas é preciso estar atento ao tempo, e desligo o fogo, para não queimar. 


Paulo Malburk

Paulo Albuquerque, nome literário Paulo Malburk. Já foi filatélico e normativista, hoje é nefelibata e caçador do poético. Crônicas, mini-contos, contos e quase alguma coisa mais. Selecionado em coletâneas nacionais.


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1 Comentários

  1. Gostei muito embora não tenha conseguido compreender algumas partes

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