Pensamento do Dias

 Não seremos nós a Peste?

Na série The Office (versão estadunidense) há um personagem chamado Dwight Schrute. Extremamente ácido e individualista e deliciosamente engraçado. Em um casamento, ele faz o seguinte comentário para Jim Halpert, seu nêmesis mas também seu melhor amigo: "Há pessoas demais aqui. Há pessoas demais no mundo. Precisamos de uma nova praga". 

Embora drástico, esse sentimento tipicamente schrutiano, habitou em mim, numa manhã de 2019. A Pandemia (praga desejada pro Dwight, cerca de 6 anos antes) havia começado. 

Com ela veio a quarentena e o isolamento social. Foi o início da pior época da minha vida. Eu só não sabia disso. E nem vem ao caso, neste relato. Ocorre, que numa manhã de 2019, com a cidade vazia, me aventurei numa caminhada de 5 quilômetros, de onde eu morava, até o Centro de Gravataí. Nenhuma viva alma na rua. Nada de trânsito. Caminhando, com minha máscara no rosto e um frasquinho de álcool em gel no bolso, parei em determinado momento. Havia um ponto em que dava pra se ver casas ao longe. Eu gostava de olhar para lá. Mas sempre quis saber se minha míope visão alcançaria mais, algum dia. Pois o dia havia chegado. Ao parar naquele ponto, vislumbrei longiquamente (viva! inventei uma palavra!) traços de Glorinha, cidade vizinha. Aquilo me deixou deslumbrado. Mas meu assombro estava apenas começando. 

Fui rodeado pelo poderoso bater de asas de uma borboleta azul gigante. Jesus! Eu não via uma dessas, desde que procurava esse mesmo Jesus nas coisas. Digamos que nessa época, havia um ministro chamado Dilson Funaro. Meus olhos encheram-se de lágrimas, pela eternidade dos 10 segundos em que ela ficou me circundando. E nem dava pra dizer que era uma reação alérgica a poluição. Não havia poluição! Sem carros. Só eu, a borboleta e o silêncio. Com Glorinha ao longe. 

E então, seguindo minha caminhada, acompanhado de um silêncio que eu nem sabia mais como era, e do qual percebi que sentia muita falta, me peguei questionando, se não era melhor assim. E me surpreendi comigo mesmo. Porque eu sempre amei estar com as pessoas. Até ali. Como eu disse, foi o início da Idade das Trevas na minha vida. Uma Peste Bubônica que deixou dolorosas cicatrizes em minha alma. Ainda amo as pessoas, mas essas trevas, me afastaram delas, ao mesmo tempo em que me fizeram perceber que tanto fazia se eu estava ou não com elas. Elas não notavam e não notariam. E não as culpo. Porque estas mesmas trevas me fizeram perceber que eu sempre estive com as mãos vazias, diante delas. 

Mas naquela manhã, pensar que a vida estava melhor assim, mesmo com o sentimento de culpa por pensar assim, afinal, muita gente já estava morrendo, me reconfortou. Naquela manhã fui estranhamente feliz. As pessoas não estavam mais buzinando em frente aos hospitais, nem jogando garrafas pelas janelas dos carros, nem soprando fumaça de Chesterfield na minha cara, nem ignorando moradores de rua e indígenas. Se bem que nessa parte, elas deveriam estar felizes, pois nem precisavam vê-los. 

Bem, o tempo se foi. As pessoas pararam de morrer (disso, né?). E isso já dá um alívio. Mas confesso que ainda saio cabisbaixo daquele ponto, ao notar, que não, não dá mais pra ver Glorinha. E ainda sinto saudades daquela borboleta azul gigante que nunca mais voltou. Me dói a falta do silêncio. Me dói saber que ainda há Chesterfield. Me dói voltar a lembrar do Dilson Funaro. Me dói concordar com Dwight Schrute. O mundo precisa de uma nova praga. A Pandemia não foi o suficiente. Não para ensinar a lição que ela queria ensinar. Mas pensando bem, na Peste Bubônica, na Gripe Espanhola e no uso dos Crocs, também ninguém aprendeu nada. 

O planeta avisa. O planeta ensina. E ninguém presta atenção. Um dia ele parará de ensinar. Apenas varrerá tudo. E só sobrarão as borboletas azuis gigantes. Ah, e as baratas. Ah, e o Keith Richards...



Davison Silveira


Davison Silveira é escritor e sonhador. Não ganhou dinheiro com nenhuma das duas, mas continua achando que as respostas da vida estão em alguma canção do Belchior, num disco de Dylan, num livro de Kundera, numa revista do Asterix e nos beijos de Denise. Para ele o sentido da vida é Centro-Bairro. E segue sua vida esperando o retorno daquele que veio dos Céus para nós salvar: Goku. Ou que finalmente resolvam fazer a versão 600 ml do refrigerante Teem

"Quanto mais arte, menos violência. Quanto mais arte, mais consciência, menos ignorância."
- Ricardo Mendes

COLETIVEARTS, 06 ANOS DE VIDA,
CONTANDO HISTÓRIAS, 
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