Tudo guardado, Osvaldo
Ninguém sabe porque ele resolveu começar. Quando nos demos conta lá estava Osvaldo, de pé ao lado das colunas da Faculdade de Direito, encarnando uma nova cariátide, deslocada do pedestal. Chegava e ia embora em horários certos, como quem cumprisse expediente. Fizesse sol ou chuva, Osvaldo integrava a paisagem do lugar, assim como seu antípoda Clóvis Beviláqua, lá na praça da Bandeira. Parecia ter sido planejado juntamente com o prédio, em encontro sutil de materiais e sonhos de construção.
Vendo-o assim, não se tinha a impressão de alguém flagrado observando as coisas e as pessoas, a administrar seu próprio silêncio. Ou que foge da troca de olhares para um ponto distante, guardando a revelação de alguma verdade frágil. Nem era ele uma dessas sentinelas graves dos códigos de honra, presas a juramentos de obediência, estátuas vivas de coração armado. Figurava uma criatura de ecologia própria, mostrando todos os dias a majestosa banalidade de tudo.
Cabelos encaracolados na parte ainda cultivada do crânio, Osvaldo traz a dignidade de um asceta sabedor das duas ou três coisas mais importantes do mundo, que realmente valem a pena. Talvez por isso não sinta necessidade de qualquer justificativa nem de apresentar lições peripatéticas no átrio acadêmico. Passara anos trabalhando no atendimento ao público desvalido do Escritório de Estágio, em busca de solução para os pequenos e grandes problemas de quem não podia pagar advogado. Estar ali parado agora talvez o ajudasse a divisar as questões já de longe, onde se situa a origem de todas as causas.
É que ninguém tem controle do que se passa no outro lado de tudo o que acontece, isso sem falar ainda do que esteve quase por acontecer, reino de gestos aflorados entre o ainda não dito e o não feito; a matemática do acaso não é ensinada nas escolas. Por isso não é possível afirmar nem desmentir de uma vez por todas, somente desconfiar que a presença de Osvaldo foi decisiva para toda uma série de virtualidades. Tal como a parábola científica da borboleta que bate as asas na Amazônia e faz chover em Nova Iorque, não é possível saber os detalhes do que a gentileza dele e o cuidado foram capazes de fazer no mundo.
Não sei se perdeu alguém querido, se foi atropelado em seus projetos e sonhos, ou se apenas resolveu buscar a simplicidade mais radical, sem misticismos de profetas em colunatas. Fato é que o corpo dele foi sendo traçado por uma estética nova, realçada no desgaste da mesma roupa, virando trapos pendurados, velho navio de muitos mares percorridos, finalmente atracado. Ou seria a personagem kafkiana da porta da lei, em novíssima versão? Na utopia viva de sua fé mansa, Osvaldo parecia nos proteger de nós mesmos, era o contraponto de certezas frágeis, das buscas mais tresloucadas, em constante movimento. Foi por isso, exatamente por isso, que não vimos o instante de seu modesto triunfo, quando ele passou tranquilamente, feito os anjos de Wim Wenders, cuidador de sonhos alheios. Porque também é uma vocação, essa, a de guardar o mundo.
Paulo Malburk |
PROPÓSITO DE NÃO SER
A CULTURA E A ARTE!
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