Pensamento do Dias

 Alexandria 

Eu fui uma criança privilegiada. Confesso. Tive TV no quarto. Não é uma confissão envergonhada. Eu tive porque minha mãe teve condições, depois de batalhar muito, para nos dar, a mim e minha irmã, este conforto. Sou grato. Não envergonhado. Mas consciente dos meus privilégios. 

Dito isso, não vou falar de meus dias de TV no quarto, assistindo Pandorga ao som de Gelson Oliveira, Tele Ritmo com Clovis Dias Costa e gastando muito Bombril pra pegar a MTV e suspirar com a Cuca Lazarotto.

Vou falar de meus dias anteriores a isso, quando a TV era a velha Sharp a válvula, em cores, da sala de casa, onde eu via as propagandas do passarinho da Zorba, do gordinho dos Cotonetes Johnson ou o avião da Varig subindo na abertura da programação da TV2 Guaíba. E via aquelas letras dançando diante de meus olhos, sabendo que elas tinham um significado. E que cabalísticamente, elas tinham um propósito para que eu introjetasse em minha alma. E assim, sozinho, com 4 anos, foi que entendi o significado daquelas letras, formei palavras, que pareciam invenção minha, sem que eu soubesse que elas já existiam, e fiz daquele mundo, meu mundo. 

Mais 6 meses, e eu já escrevia essas palavras. E tal qual uma banda, que dois pares de anos depois, eu passaria a ouvir, cantava, descobri que o mundo era maior que meu quarto (né, Ana Paula Rocha ?)

E quando descobri isso, voltei a sala de nossa casa e parei diante da estante de livros de minha mãe. Minha mãe, que havia sido vendedora de enciclopédias de porta em porta, e que um dia foi a 5ª colocada em vendas no Brasil, havia ficado com várias delas, na esperança de que um dia, seu filho, se tornasse um intelectual. Barsa, Mirador, Conhecer, Delta-Larrouse, Britânica. Enciclopédias biográficas, geográficas, de história, zoologia, infantis e até uma sexual. Todas ali. Ao meu alcance. E então comecei minha aventura.

Um dia, todas se tornaram minhas. 

Não me tornei um intelectual, porque é uma raça chata do caralho. Mas me tornei mais sábio. 

Os anos se passaram. Me tornei sócio de bibliotecas de escolas e públicas. Colecionei quadrinhos. Me tornei um raro exemplar da raríssima raça de homens que liam Playboy, por causa das entrevistas (depois de colar os pôsteres na parede do quarto). 

Mais anos se passaram e me tornei escritor. Escritor ainda sem livros, mas graças as redes sociais, um escritor com leitores. E no final, é isso que conta. É esse o propósito de escrever. 

Mas quando volto para os cômodos de minha mente, tal qual Morpheus voltando ao Sonhar, e revisito meus passos na vida, e tento entender como a paixão pelos livros, se tornou minha companheira mais antiga e eles meus amigos mais fiéis, não é para os corredores frios de uma biblioteca que retorno. É para o aconchego de uma sala, com almofadas, tapetes, uma estátua de Buda, a frente de quadro de Iemanjá, numa estante forrada de saber. A sala da nossa casa. Os livros de minha mãe. Lá foi minha Alexandria.

Lá fui feliz. E quando a solidão corrói minha alma, nos dias de hoje, é para minha biblioteca, de livros, que hoje revendo, mas que também leio, minha biblioteca, mal feita, de caixas de papelão, mas que ao invés de causar vergonha pelo improviso, me causa orgulho, por não estar só, que retorno. Amigos de hoje, que me lembram os primeiros, que espero que ainda existam, na Alexandria de outro apaixonado.




Davison Silveira


Davison Silveira é escritor e sonhador. Não ganhou dinheiro com nenhuma das duas, mas continua achando que as respostas da vida estão em alguma canção do Belchior, num disco de Dylan, num livro de Kundera, numa revista do Asterix e nos beijos de Denise. Para ele o sentido da vida é Centro-Bairro. E segue sua vida esperando o retorno daquele que veio dos Céus para nós salvar: Goku. Ou que finalmente resolvam fazer a versão 600 ml do refrigerante Teem

"Quanto mais arte, menos violência. Quanto mais arte, mais consciência, menos ignorância."
- Ricardo Mendes

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