
A teia
É fato: a semana passada foi de grande importância para a história do Brasil. Um encontro do passado com o presente e o futuro do país, como disse alguém que estava lá, no epicentro dos acontecimentos. Você pode até não gostar da decisão final, do julgamento em si ou da corte em geral, mas que foi histórico, foi. Que foi inédito, foi. Que foi de relevância nacional, foi. Sendo de tamanha magnitude, o caso foi devidamente explorado, comentado e analisado em todos os meios de comunicação, nas redes sociais, nos bares de esquina, escritórios de advocacia e grupos da família. Você deve ter acompanhado. Sem mais nada a acrescentar, vou falar então da aranha.
Fazia alguns dias que a observava pela janela da cozinha. Eu do lado de dentro, ela do lado de fora. Era grande e bunduda, a aranha. Pelas cores intensas lembraria a cobra coral, se não fossem as oito pernas. Pernas listradas e fortes, embora não peludas, como seriam se fosse uma caranguejeira. Diferente da caranguejeira e da cobra coral, por certo, era completamente inofensiva para a espécie humana. E se alguém achava que eu estava tecendo algum tipo de analogia, a leitora e cidadã atenta já percebe que não é o caso – pois a aranha jamais tentou invadir minha casa, jamais liderou um motim, jamais conspirou contra a democracia. Convivemos em paz, eu e a aranha, a aranha e eu.
Perto do vidro, no pequeno recuo da fachada, ela tinha armado sua teia. Gastei quase uma manhã inteira de pé na cozinha, acompanhando, como quem olha pela janela, o processo artístico da dedicada tecelã. Coisa surpreendente, devo admitir. Não sabia, por exemplo, que o fio lhe sai do bumbum. Nem que ela o vai puxando e manipulando com as patas traseiras, enquanto com as dianteiras mede a distância certinha para costurá-lo no ponto exato da teia em construção. Dizem os especialistas que o fio é tão fino quanto seda e mais resistente do que aço – isso também eu jamais teria imaginado. O resultado não poderia ser mais impressionante: uma casa grande e transparente, armadilha quase invisível, arquitetada à perfeição. Além da teia na janela, há outras na varanda. Elásticas, balançam com a brisa, esticam-se pra lá e pra cá. Muriçocas, moscas, mutucas, mariposas e libélulas já encontraram nelas seu fim. Uma única vez confesso que intervim – e liberei dos fios pegajosos um beija-flor mirim.
A proximidade da convivência fez com que me acostumasse com a presença dela, e com o tempo a aranha virou uma companhia comum durante o café da manhã e da tarde. No entanto, nem sempre estava ali, do outro lado do vidro, estampada no céu da paisagem rural. Aliás, a maior parte do tempo ficava escondida numa espécie de casulo, mais pra cima, atrás do quadro da janela. Mas era só alguma coisa cair na sua teia, que ela, avisada pela vibração dos fios, descia hábil e veloz para ver o que é que tinha pra comer.
Foi por isso que estranhei vê-la dias seguidos na mesma posição. No meio da construção transparente, bem em frente à janela, sem se mexer. Esperei um tempo antes de jogar uma casca de alho na sua direção. Como previsto, ficou grudada na teia, causando nos seus fios um leve tremor – já dela, nenhuma reação. Ainda assim, demorei para entender que estava morta. Presa nos fios pegajosos, tinha caído na própria armação.
Está ali faz dias. Já começou a encolher, cada dia parece menor. A bunda, de onde outrora saía tão potente fio de seda e aço, decaída para trás. Só não cai de vez porque os pezinhos continuam presos. Vira e mexe vejo uns pássaros se aproximarem – atrás de um petisco fácil, posso imaginar. Mas ao chegarem perto, mudam de rota, um por um. Não sei se as cores dela ainda assustam, se o apetite vai embora quando se dá de cara com a morte ou se o corpo findado virou placa de advertência: cuidado, cilada. No fim das contas, a teia continua em pé.
Mas vai ver é só uma questão de vento, que o tempo vai levar. E a vista da minha janela, como ficará?
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| Yvonne Miller Foto: Thaís Vieira |



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