ISSO DÁ UMA CRÔNICA

 Oito horas, sala de espera, em jejum

— Tá lotado.

— É, aqui fora tá melhor. Qual é a sua?

— Seis. Ah, não, nove. E a sua?

— Oito. Estranho, tem tanta gente na frente...

— Senha 25!

— Ué, como assim?

— Daqui a pouco recomeça do um. Acho.

— Ah, tá.

— Sai tudo errado esses exames aqui. Minha filha fez três, tudo negativo. Quando deu positivo, já tava com seis meses.

— Amor, me presta el papel da médica, por favor. … Gracias, já volto.

— E se eu aprendi uma coisa em todos esses anos, é nunca falar ‘será?’. Eu não falava ‘será que este verão vai ser bom?’, eu falava ‘esse ano vai ser o melhor verão de todos, vamos vender muito’. E funcionava mesmo. Tem gente que só comprava comigo, acredita? Se eu não estivesse na loja, não compravam. E eu ganhava gorjeta, viu. Nunca vi as outras meninas ganharem. Mas pra mim, os clientes deixavam no balcão. Dez reais, vinte, cinquenta. Mas um dia ...

— Cadê a chave do carro? Vou pegar as cadeiras de praia.

— Ontem fui visitar ele na cadeia. Assim que cheguei, ele começou a vomitar verde. Eu perguntei ‘que é isso?’, e ele disse ‘é o spray de pimenta que jogam na gente’. Aí comecei a fazer um escândalo.

— Minha filha mais velha também já fraturou o ombro. Semanas sem poder mover o braço. E depois veio a cirurgia. Mais dois messes de gesso. No aniversário dela tivemos que cortar a manga do vestido para fazer o braço entrar.

— Ela fez quantos anos?

— Quinze. Mas isso faz tempo. Eu estava grávida do meu caçula e não sabia. Estávamos com ela no hospital quando comecei a passar mal. Meu marido disse logo ‘tu tá grávida’. E não é que estava mesmo?

— Que história linda.

— Tentamos muito, sabe? Já tínhamos as duas meninas. E nada de chegar um menino. Até que veio ele.

— Quando é pra ser, é pra ser.

— É verdade. Ele é meu companheiro. Né, filho? Ele que pedala comigo.

— Eu vou até Itapema de bike.

— É mesmo?

— Pedalar es lo mejor. Não tem igual. Para a saúde física e mental.

— Então me prenda, disse. Se não posso fazer um escândalo aqui, então me prenda. Ele não tá pagando já? Pra ainda ser tratado desse jeito.

— Quando passo na frente da loja, o pessoal ainda me chama. Mas hoje só dou tchauzinho. Não quero mais ter contato depois daquilo, sabe?

— Então. Não foi a vizinha que denunciou ele? Estupro. A filha dela tinha catorze. Agora ele pegou dezesseis.

— Senha 26!

— Perdón, qué número ela falou?

— Vinte e seis.

— Obrigado.

— Senha 26! ... Ninguém? ... Senha 27!

— Meu marido conserta tudo. Ele que montou as bicicletas pra gente. São essas ali. A azul é dele, né filho? A outra é minha. Primeiro meu marido me deu uma laranja. Mas não me acostumei. Daí vendi para minha amiga que trabalhava comigo e comprei essa.

— Aqui as cadeiras. Ela chamou mais alguém?

— Vinte e sete agora. Tu tá com meu celular? ... Obrigada.

— Au, au!

— Sai daí, Zeus!

— Hhhhh, não acredito!

— Que foi?

— Faleceu o Vargas Llosa!

— Eu já trabalhei de vendedora, babá, cuidadora... Semana passada a patroa me chamou pra cozinha. Eu já comecei a ficar nervosa, sabe como é. Ainda mais depois daquela experiência na loja. Cheguei lá e ela tinha comprado um bolo. Disse ‘nunca aconteceu de uma funcionária trabalhar aqui por sete meses sem faltar um dia’. Porque eu não falto. Tenho menino, marido, casa, o cabelo caindo de estresse, mas não falto serviço.

— Como chama mesmo o livro dele que eu mais gostei? Agora não lembro. É sobre um capitão do exército todo direitinho que é enviado à Amazônia pra montar um serviço de prostituição para os soldados; algo assim. É, parece esquisito, mas é bom.

— Meu Deus, não vão chamar nunca? Que horas são?

— Nove e quarenta.

[...]

— Senha 8!

— Oba, sou eu! ... Bom dia.

— Bom dia. Desculpa a demora. Tá uma confusão hoje...

— Não se preocupe, estava mesmo precisando de material para uma crônica.

— Oi? Não entendi.

— Não tem problema. Coloco o braço aqui?

— Sim, por favor. Agora abre e fecha a mão. Isso. Respira fundo. Só uma picadinha... Pronto!


Yvonne Miller
Foto: 
Thaís Vieira

Yvonne Miller: berlinense de nascença, brasileira de alma, mestre em linguística, escritora migrantecontista e cronista, observadora de bichinhos, autora do livro “Deus Criou Primeiro um Tatu – Crônicas da Mata” (Aboio, 2022), estado civil: preocupada.

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