Eu não tenho boca, mas preciso gritar

   Acordei diferente um dia. Logo eu, que nunca queria mudar. Não interessa, você vai mudar. Vai ficar velho, vai sentir gosto diferente na sua comida predileta. Vai sentir gosto diferente na sua ressaca, ou nem vai mais ter ressaca. Porém, esse dia foi extremamente diferente. Acredite, foi daquelas coisas que temos medo de contar para qualquer pessoa. Vão te chamar de louco. Você mesmo sabe que aconteceu, foi contigo. Não há dúvida disso, e ainda assim você se sente louco só de se imaginar de falar isso para alguém. Ainda assim, contarei.
   Eram aqueles domingos de manhã. Uma manhã quente. O cara já acorda todo suado. Fui pra cozinha, me vesti, tomei um chá frio da noite passada, comi alguma coisa. Voltei para o quarto. No corredor tem um espelho, passei fitando ele de canto. Parei e voltei. Ao me olhar, eu não tinha boca. Isso mesmo, no lugar dos lábios e do buraco tinha um pele contínua. Do nariz até o queixo, só pele. Não senti nada ao ver isso, mas entendi o gosto de merda na boca. Só não entendi como foi possível tomar o chá e comer. De todo modo, não senti absolutamente nada.
   Vesti minha roupa, pus a jaqueta e saí. Aonde ir? Como aproveitar esse dia bonito sem minha boca?     O melhor que pude pensar foi em sentir alguma coisa que não envolvesse nada como o paladar, ou conversar, ou beber, ou comer.Então fui ao parque. Sentir um pouco de vento no rosto. Respirar um pouco. Afinal, respirar eu ainda podia. Nem sei porque, mas fui lá, na verdade, para ver se tinha gente. Não tinha ninguém lá. Isso seria um sonho? Eu não sinto como se fosse um sonho. Talvez seja a metáfora de um texto de alguém muito perturbado. Mas quem faria isso com um personagem? Um personagem sem boca? Ou seria a perspectiva de um terceiro que tirou a minha boca? Mas a arte não é justamente sobre isso? Como as pessoas enxergam a mensagem do autor? Olha, agora ele materializa uma rosa na minha frente, que gentil da parte dele. Será que ele está me escutando? Eu posso falar? Ok, fico com isso. Eu, na realidade, não tenho boca. É real a minha falta de boca. Estou tranquilo quanto a isso. Tranquilo até demais.
Só tem um problema: eu preciso gritar.

Texto: André Palma Moraes
Arte: Jorginho

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