O SIMIÓIDE


A Identificação

   Toda arte que lida com temas de humanidade busca apoio na identificação. Assim, fica mais
fácil trabalhar as emoções e razões do personagem. Não só isso, a ideia de ter sucesso com um texto que promova identificação, pura e simplesmente, também é bem difundida. Aqui, vou focar no cinema, que entendo um tanto mais.


   A maior indústria do cinema, Hollywood, busca isso o tempo todo. Claro, em seus filmes de ponta, os blockbusters. Não se pensam mais filmes para as massas sem pensar em identificação, entre os personagens e o público. Independente de quantos milhões irão ser gastos, tem que gerar identificação. Um filme infantil, por exemplo, coloca as crianças em situações parecidas com as situações diárias. Mesmo o filme sendo fantástico, como em
Bolt, o Supercão. A personagem Penny é dona de um cãozinho que é astro de um programa de TV. O cão, por sua vez, pensa que tem poderes de verdade; a trama toda é sobre isso, sobre a relação de humanos e seus animais domésticos. Sobre abandono animal e adoção. Porém, ao final da primeira cena, já vemos um momento em que a Penny tenta levar seu adorado companheiro para casa, por um fim de semana. Afinal, ele mora no estúdio desde muito pequeno. O agente da atriz mirim nega o pedido e a trama se foca na vida do cachorro. Ainda assim, a identificação com as crianças ficou registrada. Qual criança não gostaria de brincar
com seu cão no tempo livre? O exercício de imaginação da “perda desse tempo”, da possibilidade de diversão, traz tristeza aos espectadores e quebra a barreira do inverossímil, gerando identificação. Toda criança não entende quando os pais falam: acabou a hora da brincadeira, hora de dormir.


   Em temas mais adultos, temos
Velozes e Furiosos. Pessoas bonitas e malhadas dentro de carros potentes. Uma dessas coisas nós queremos. Ou beleza, ou saúde física, ou carros potentes. Em um tema masculino, Rambo resolve tudo sozinho. É a autoafirmação de masculinidade. Porradas, tiros, ação. Tudo no limite da realidade. Tirando o homem comum de sua vida medíocre e o levando a pensar que pode salvar o dia no final das contas. Um tema mais feminino? No filme 500 dias com ela, vemos um texto que fala da liberdade da mulher de escolher com quem quer se relacionar. Sobre poder ir e vir de todos os tipos de relacionamento sem ser julgada. Veja bem, eu não estou querendo falar aqui que filme de homem é isso, filme de mulher é aquilo. Até porque o espectro de gêneros hoje em dia aumentou um bocado. Estou citando como a indústria do cinema vê e aplica a identificação para a maioria do seu público. E como isso deu certo ao longo das eras.

   Obviamente temos filmes fora dessa curva, e é justamente aí que eu quero chegar. Onde a
identificação, por mais que seja planejada, atinge um papel importante na obra. Normalmente isso acontece quando o texto é escrito por alguém que entende realmente os personagens do texto. Alguém que passou uma experiência parecida, ou identificado com os temas. Pois somente a criatividade do roteirista aliado à pesquisa, como bem vemos frequentemente, não dá muito certo. Chamemos isso de um texto natural, não forçado. Então, um texto natural que posso citar é o primeiro
De Volta para o Futuro. Ele veio de uma experiência do roteirista Bob Gale visitando seus pais. Ele achou o anuário de seu pai e descobriu vários detalhes da vida escolar paterna, e então imaginou como seria o encontro deles nesse tempo. Não que tenha sido um fato que aconteceu, ainda temos aqui a imaginação, mas uma pessoa que viveu ao lado de seu pai, sabe muito bem passar os seus sentimentos para o papel. Mesmo que nesse exercício fictício.

   A análise desse tema tem me perseguido há tempos. Tenho tentado perceber melhor isso nas pessoas ao redor, uma vez que faço arte para mim. Com experiências pessoais minhas. Se servir para alguém, beleza, massa, muito legal. Mas penso em começar a fazer arte para os outros, digamos assim. Então tenho visto o
Pantera Negra e o Homem Aranha no Aranhaverso trazendo protagonistas negros. Os novos filmes de Star Wars com uma protagonista feminina. Vários filmes direcionando o mercado para mostrar os temas femininos atuais, como Adoráveis Mulheres, de Greta Gerwig. Uma história sobre 4 irmãs, todas diferentes ao seu modo, em um tempo difícil para as mulheres. Uma série como The Handmaid’s Tale, que trata de aborto, feminicídio, controle teocrático, estupro. Uma experiência mais próxima: Anne with an E. Que estou vendo com a minha namorada que é ruiva. Ela chora ou ri de acordo com as falas da Anne sobre o seu “horrível” cabelo vermelho. No começo não entendi muito. Logo ela me explicou que eram memórias da infância dela. Quando sofria bullying por ser diferente, assim como a personagem. Enfim, para mim é muito importante começar a perceber que a identificação é muito mais forte como alicerce da obra do que como detalhe.

   É bom começar a perceber algo, em qualquer momento da vida. Com essa experiência artística
toda, um texto com o qual se identificar e com uma bela execução cinematográfica, criamos filmes atemporais. Criamos nostalgia ao último
frame da obra. Criamos saudades ou lembranças. Aí a importância da coerência e coragem ao fazer arte. A possibilidade de criar arte relevante ao mundo. Qualquer arte é válida, mas creio que fazer arte relevante é necessário. É necessário mudar o mundo com arte, sempre.

   Aqui o Simióide, encerrando transmissão. Hoje o mundo está mais pesado, então, repensar é preciso. Revisar o que está dentro é preciso. Sempre atento a ameaça que está ao lado. Pode ser ela uma mudança


André Palma Moraes
 

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