MICROSCOPIA DO OLHAR

 

Já fui mulher, eu sei…

Ao ser inquietada sobre uma pergunta que não pensamos em nos fazer (ou talvez não ousamos nos fazer), fui convidada a refletir sobre o fato e ato de ser mulher, sobre meu corpo feminino e sobre minha visibilidade (ou não) em sociedade. O corpo-coisa, o corpo-objeto, o corpo-desafeto. Uma música do artista paraibano Chico César ficou martelando na minha cabeça desde então, que traz um refrão que diz assim: Eu sei como pisar no coração de uma mulher...já fui mulher eu sei...já fui mulher, eu sei…. Mulher-coração, mulher-sentimento. A “mulherzinha” frágil que ainda povoa o inconsciente coletivo da sociedade patriarcal. Por outro lado, um coração que pode ser representativo da imagem individual e coletiva do feminino. Sabemos como pisar nesse coração pois saímos de uma mulher, estivemos todos e todas ligados e ligadas a ela.

O quanto temos ainda para conscientizar e aprender sobre nós mesmas, enquanto autônomas, protagonistas, capazes. Em determinado momento da humanidade o corpo da mulher era considerado divino, por ser capaz de co-criar a vida. Isso era sinal de muito poder. Logo, uma ameaça. E assim, aos poucos, essa “ameaça” foi sendo afastada, desconstruída, pisada e humilhada. Tomaram conta dos nossos corpos para poder dominá-los e determinar até onde eles poderiam ir. E, de ser divino, co-criadoras, passamos a ser a “incubadora” da semente masculina.

Engraçado notar como é difícil falarmos de nós mesmas, reforçando a frase com a qual eu abri essa conversa. Trazemos o debate para o campo amplo das ideias, nos colocando como cúmplices de um discurso que também é nosso, engrossando o caldo da voz que quer ser ouvida e respeitada. No entanto, minha voz sozinha também precisa ter força. Minha história, minha dor. Nesse quesito, não sou melhor que ninguém. Mas honestamente, quantas vezes nos colocamos no palco da nossa história? Nossos sangramentos mais profundos, quem realmente sabe? Muitas vezes, nem nós nos atrevemos mexer nesse baú trancafiado. 

Então eu vou contar uma história de uma “amiga minha”, a qual por motivos óbvios vou manter o sigilo da sua identidade, e que já passou por poucas e boas nessa vida. Um dia, em uma das nossas conversas, ela me revelou que se sentia como aqueles armários de camping. Ri muito daquela observação, enquanto ela mantinha o olhar perdido em qualquer coisa. Percebi que a fala era séria. Baixei a cabeça, aguardando respeitosamente o desdobramento daquilo. Comentava que se tivesse que ser um objeto, o que mais se aproximava metaforicamente disso seria esse armário. Vocês já viram como é um armário de camping? Ele é o que chamamos de “pau para toda a obra”. Versátil, eficiente, capaz de guardar e aguentar diferentes cargas e objetos. Frágil e forte ao mesmo tempo. Capaz de ser destruído por objetos cortantes e pela umidade. Ao mesmo tempo, suportando deslocamentos e desmontes. Aquilo me deixou sem palavras, e, ao mesmo tempo, me fez ficar em silêncio ao seu lado. Fazia muito sentido. 

Fiquei me imaginando como um armário de camping. Provavelmente eu seria da cor vinho. Vermelho escuro, profundo. O pior de tudo é que eu não poderia nem exigir o tipo de “carga” que eu iria guardar, afinal, objetos não falam, não é? Pelo menos que não me usassem como sapateira, por favor! Sapatos “chulezentos” ou com merda de cachorro...me poupe! Mas é o que normalmente esses armários são, utilitários. Eu não teria muitas escolhas. Se pelo menos alguém tivesse a ideia de guardar livros, ah...eu seria muito feliz.

Minha divagação foi quebrada pela voz da minha amiga, que furtivamente escondia uma lágrima teimosa. Ali ela falava de cargas mais pesadas que a minha. Deixei minha leviandade de lado e a acolhi. Acolhi na minha mão a dela, e todo o seu ser. Quantas mãos encontramos dispostas a acolher e dividir a nossa carga? Traições, responsabilidades prematuras, a menina que precisou ser mãe da própria mãe, a jovem que precisou ser forte e criar os filhos praticamente sozinha, a mulher que se sentia culpada em ser feliz. Quantas cargas emocionais e físicas nos fazem carregar, alegando que não fazemos mais que a nossa obrigação? Como podemos transformar todo esse peso imposto a gerações de mulheres em força e resiliência, para que as mulheres do futuro não sejam armários de camping? 

Tenho orgulho de dizer que minha amiga transformou a carga dela em poesia. Para que outras mulheres se fortaleçam e para que homens se conscientizem. Talvez nunca conheçamos o alcance da sua carga poetizada. Mas saberemos que agora a carga é leve, transmutada em sabedoria e cor. Preenchida com os sons da co-criação original. Sem dor, só potência.

Essa foi a canção que influenciou a autora: 



Patrícia Maciel é doutoranda em Educação pela Unilasalle; Mestre em Artes Cênicas pela UFRGS, com pós-graduação em Psicopedagogia pela UNIASSELVI/ RS, Gestão Cultural pelo SENAC-RS, e Língua, Literatura e Ensino pela FURG; Graduada em Teatro- Licenciatura pela UFRGS. Atua como docente e pesquisadora na área de Artes e Educação, principalmente nos segmentos de artes, teatro, educação e formação de espectadores. Desenvolve pesquisa em Pedagogia do Teatro, em especial sobre Mediação Teatral, e escrita criativa. Membro fundador do grupo ColetiveArts, atuando na área de escrita literária.







03 ANOS DE COLETIVEARTS
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