DEAMBULÂNCIAS

Imóveis

Lá estava ele instalado na calçada, em frente ao supermercado. O carrinho de catador quase vazio, estacionado. Um cachorrinho de pelo curto a servir-lhe de companhia, amarrado por um barbante, movendo-se alegre no pequeno espaço de liberdade. Apesar da nossa interrupção de clientes, chegando e saindo em nuvens de consumo, estavam dispostos no lugar como se tivessem sempre a ele pertencido.

Descobri que ele era Zé e o cãozinho Situação. Da época em que alguém lhe ofereceu o animal para criar e Zé respondeu: “Mas eu, nesta situação?...” Acabou aceitando, conduzindo no carrinho mais outra história somada às já por ele carregadas pelo mundo. Certamente a alegria trazida pelo pequeno ajudaria a amenizar dificuldades, perceber outros caminhos. De pouco em pouco, de bocado em bocado, talvez a própria fome se acostumasse a essas contas de dividir.

Parecia o rei do essencial, como se a necessidade pudesse ser distraída para afrouxar um tanto o jugo e experimentar-se suave, levada pelo humanamente possível. Seria esse o segredo daquela paz intrigante de Zé, seus dentes manchados de amarelo cinza virando ouro? Da radical liberdade que, apesar de lhe doer o estômago, digere também a incerteza todos os dias? Esse meu semelhante de misteriosa abastança era agora o soberano do chão que lhe cabia, a vida ali irradiava, imediata e plena.

Um pouco distante da dupla, na mureta baixa em que se acostavam, luzia a solidão de uma casinha em miniatura, feita de palitos de sorvete e incrustada com pedras cor de rosa, da mesma cor do sal do Himalaia prometido nas prateleiras altas do supermercado. O modelo não estava pronto. “Talvez amanhã”, respondeu Zé, com a falta de pressa de um bom construtor, ciente de sua arte. Não havia vaidade nesse tom, nem mesmo preocupação de proteger a obra da fina chuva que caía.

Pelo vago preço que custaria a casinha, vi logo que seu criador tampouco tinha ambição de lucro. Não seria o melhor corretor da obra, capaz de discursar sobre méritos imperdíveis e de pregar a oportunidade única oferecida pelo mercado ao feliz comprador. Corretor é mesmo uma curiosa palavra, pensei, com essa pretensão de ditar o rumo das coisas, marcar um lado certo oposto ao definido como errado – quando na realidade o mundo mostra que tudo está mesmo é misturado, escolhas seletivas já feitas antes do jogo começar e escassas as doses de justiça.

Descobri a razão do meu incômodo: parado ali o homem era subversão de sentidos. Seu silêncio de latifúndio questionava nossos movimentos desatentos a milagres, quebrava a ilusão de permanência. E a calçada era a moldura privilegiada, pela qual classificações e hierarquias tornavam-se vãs, imobilizadas pelo latido alegre de Situação. Assim é que naquela manhã fez-se o encanto: de repente o mundo ficava tão pequeno e a vida tornava-se tão simples que a casinha era um generoso convite para nela entrar, com alma de criança, contemplar o mundo lá fora e a chuva que caía. 


Paulo Albuquerque, nome literário Paulo Malburk. Já foi filatélico e normativista, hoje é nefelibata e caçador do poético. Crônicas, mini-contos, contos e quase alguma coisa mais. Selecionado em coletâneas nacionais.

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