DOSSIÊ KOBIELSKI

 

DA CUSPARADA AOS ESGOTOS: A “ANARQUIA” DE ANGELI NO BRASIL PÓS-DITADURA


Minha incursão no mundo das histórias em quadrinhos aconteceu por conta dos gibis de Walt Disney. Pato Donald, Tio Patinhas e cia me arrebataram desde cedo. Logo vieram, Mônica, Tarzan, Zorro, Fantasma, o faroeste, e claro, os super-heróis. Batman, Super-homem, Capitão América e o universo Marvel fizeram parte de minha vida de leitor de gibis, assim como os muitos guris e algumas gurias. Mas, num belo dia de 1987, na banca do Bento – um sebo que ainda resiste aqui na cidade de Alvorada -, minha percepção sobre as histórias em quadrinhos foi abalada brutalmente. Folhei uma revista completamente diferente te tudo que eu já tinha lido até então. A capa era colorida, formato magazine, o miolo do chamado “papel jornal”, uma pegada bem underground e um nome peculiar: “Chiclete com Banana”. Pronto. Pensei: “Isso é revolucionário.” Mas, afinal de contas, do que se tratava aquela publicação? Quem a fazia?


Importante lembrar, que recém estávamos saindo de um período de exceção no Brasil: uma ditadura militar que durou vinte e um anos, e que deixou marcas profundas na história do nosso país. Torturas, mortes, censura aos meios de comunicação e as manifestações artísticas, imperavam naqueles “anos de chumbo”, especialmente a partir de 1968, com o AI-5, o mais duro de todos os Atos Institucionais.

Na campanha das “Diretas já”, em 1984, se avizinhava a redemocratização, mas logo foi derramado o balde de água fria em nossas esperanças e levou à eleição indireta de Tancredo Neves, que sequer assumiu, morrendo antes da posse, deixando em seu lugar não-ocupado um dos líderes espertos da ditadura que findava. O remendo de escritor e coronel maranhense José Sarney tentava conduzir a crise econômica em planos mirabolantes. Malfadado em quase tudo, a bem da verdade conduziu um processo democrático que resultou em algo ao qual o povo não estava muito afeito havia duas décadas: liberdade de expressão.


Em 1985, o mundo dançava ao som do The Cure, Smiths e Echo & The Bunnymen e vivia o novo hedonismo da austera era Reagan e Thatcher. No terceiro mundo, um país se reencontrava com a democracia, mas tentava superar sua síndrome de vira-latas, em meio a velhos problemas como desemprego, inflação e desigualdade social. Uma onda inundava as rádios brasileiros com o “novo rock nacional” enchendo as ruas de punks, darks e metaleiros, que se embalavam em um festival internacional repleto de velharias.

Nessa “atmosphere”, em outubro, ao preço de 9 mil cruzeiros, “Chiclete com Banana” chegava as bancas e trazia na capa a Rê Bordosa, personagem já conhecida dos leitores da Folha de São Paulo, nas tiras que vinham no caderno Ilustrada. A distinta moça estava em uma banheira com um cigarro e um copo de bebida apoiado nos seios, à mostra. O autor das tiras da Folha era Angeli.


Arnaldo Angeli Filho nasceu em 1956, na cidade de São Paulo. Roqueiro e periférico da classe média baixa como tantos de sua geração, largou os estudos na sexta série e aos 14 anos publicou seu primeiro desenho na extinta revista Senhor. Em 1973, foi convidado a desenhar para a Folha, no qual criou a tira diária Chiclete com Banana. Daí a referência.


Igualmente oriundos das tiras no jornal, outros personagens integravam o interior da revista: Bob Cuspe, Wood & Stock e os Skrotinhos, entre outros. Publicada pela Circo Editorial, recém-criada pelo poeta, editor e agitador cultural Toninho Mendes, Chiclete com Banana transformou-se no maior fenômeno dos quadrinhos de sua época, com tiragens de 120 mil exemplares.

O humor da Chiclete era antes de tudo um espelho da sociedade da época, muito especialmente dos jovens. Ícones como Bob Cuspe (um punk paulistano e suas idiossincrasias), Rê Bordosa (uma junkie inspirada em tantas figuras encontradas pelas baladas da época), os neuróticos como Rampal o Paranormal, os escrotos iconoclastas como os Skrotinhos, os envelhecidos militantes de esquerda Nanico e Meia-Oito e, é claro, os hippies tão antiquados e folclóricos Wood & Stock demonstravam a grande fase criativa de Angeli.


Com protagonismo escancarado do artista, a revista em princípio trazia também quadros com tiras e pequenas histórias de Laerte, Luiz Gê, Fernando Gonsales e Glauco, que depois ganhariam seus próprios títulos, como Piratas do Tietê, Geraldão e Níquel Náusea. Todos pela Circo.

Esse fenômeno durou até o início dos anos 1990, quando veio a falência provocada por mais uma crise econômica, de mais uma aventura ao liberalismo em que o país embarcou, com a eleição de Fernando Collor. A ruína foi geral e cada um seguiu seu próprio caminho. Mas Chiclete com Banana e seu humor influenciaram tudo que veio depois, respingando na música, no teatro, artes plásticas, cinema e televisão.


Encontrei o Angeli no final dos anos 1990, numa Feira do Livro de Porto Alegre e perguntei-lhe qual a razão de “matar” a Rê Bordosa, ele disse que não tinha saída, por não encontrar mais sentido nas loucuras da personagem, um tanto a sua feição, também de bom bebedor e dado aos excessos. Seguiu publicando na Folha até recentemente, quando abandonou as tiras na Ilustrada após 40 anos, dedicando-se apenas à charge política. Teve trabalhos publicados pelas revistas Linus, de Milão; El Vibora, de Barcelona; Humor, de Buenos Aires, e no jornal Diário de Notícias, de Lisboa. Idealizou o projeto Baiacu, fez exposição de  quadros de seus personagens em galerias de arte, realizou trabalhos gráficos de respeito como a arte da capa da do segundo disco da banda Fábrica de Animais. Por 16 anos consecutivos (1997 a 2012), foi eleito o melhor chargista brasileiro no festival de quadrinhos na premiação HQ Mix.

Em abril desse ano, Angeli divulgou nas redes sociais o final de sua parceria com o jornal Folha de S. Paulo, encerrando sua brilhante carreira nas histórias em quadrinhos nacionais.

O motivo é uma doença de nome afasia, uma condição que age no cérebro e que interfere no desenvolvimento da linguagem e na comunicação verbal/escrita, geralmente consequência de algum outro problema de saúde. Bruce Willis, famoso artista do cinema, teve divulgado o mesmo quadro de saúde, recentemente.


Angeli completará 66 anos em agosto. A Chiclete com Banana, por sua vez, completa em outubro agora 35 anos de sua primeira edição. Ao contrário de alguns dos personagens retratados, ambos envelheceram muito bem. Icônicos de uma certa juventude. Aparentemente sem traumas.



Paulo Kobielski

Paulo Kobielski é professor de História com especialização em Filosofia e Sociologia pela UFRGS. Trabalha com fanzines  e quadrinhos na educação
Paulo escreve a coluna Dossiê Kobielski, para ler, clique Aqui.
Paulo conquistou  o Troféu Ângelo Agostini de melhor fanzine no ano de 2020, confira matéria Aqui.
Paulo é um dos apresentadores do podcast cultural Coletive Som, A voz da Arte. Para escutar os episódios clique Aqui.
Também confiram o episódio n# 02, apresentado por Patrícia Maciel e Luciano Xaba, entrevistando o Paulo Kobielski, clicando Aqui.


04 ANOS DE COLETIVEARTS,
CONTANDO HISTÓRIAS, CRIANDO MUNDOS
Não espalhe fake news,
espalhe cultura!

Postar um comentário

5 Comentários

  1. Uma viagem ao passado! Anos 80 foram incríveis, cenário cultural efervescente, muitas possibilidades, muitas promessas ... O rock nacional! Eu lia muito Chiclete com Banana ... Texto muito bem escrito e referenciado!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi amigo Sandro. Os 80s foram importantes pra nós. Essa publicação foi um março. Aquele abraço.

      Excluir
  2. Lembrei de uma entrevista com Angeli na extinta Comix Magazine. Nunca li por inteiro uma Chiclete com Banana quando jovem, mas bem mais tarde é que vi republicações em bancas como o Cantinho da Sorte (em Alvorada) e ainda vou assistir ao filme do Bob Cuspe pra fazer uma vídeo-resenha

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá Anderson. Bah. Cantinho da Sorte nos abasteceu muito. Ainda não vi o filme do Bob Cuspe. Se achar me avisa brother. Aquele abraço.

      Excluir
  3. Muito bom esse panorama histórico cultural, Paulo! Entrei na FABICO - UFRGS em 1981, em Jornalismo no mesmo ano em que comecei a me comprometer com o teatro e o cinema. Como ator, participei de três montagens teatrais que ainda tiveram que fazer ensaios para a censura, uma das experiências mais rídiculas e constrangendoras de minha vida de ator.
    Sempre adorei quadrinhos e quando me deparei com a Chiclete com Banana tive a mesma sensação que tu tiveste. A partir daí comprei tudo que a Circo Editorial publicou, inclusive os poucos número da revista Circo. Adoro a Laerte, o saudoso Glauco, mas reconheço que a força motriz sempre será o Angeli com o seu imenso talento para decifrar a fauna humana, nos fazendo rir e refletir. Abraço

    ResponderExcluir