DEAMBULÂNCIAS

 


Cristina

O grito na rua, no meio da noite, alongando-se: “Tiago!”

Outra vez, raspando a garganta, forçando passagem. Vinha de fora do muro, modulando entre choro e desespero: “Tiago, meu Deus, onde você está? “ Novo  intervalo, a retomada. Os soluços pareciam brigar com as lágrimas, borbulhando. O som  distanciava-se, objeto voador não identificado. Dissolvia-se no silêncio.

Não, essa não era Cristina, soubemos depois. Embora parecesse integrada à rua, a voz não irradiava o mesmo domínio de si, de quem costuma fazer do mundo sua casa de paredes abertas. Nem tinha o poder mágico de transformar necessidade em virtude, ou a rouquidão desleixada, como quem esvazia importância das coisas ditas pela própria boca, por mais fantásticas que sejam as historias.

Quem confirmou foi a própria Cristina, no dia seguinte, quando passou tentando descolar alguma ajuda. Ela até conhecia essa do choro, era ocupante da casa abandonada da esquina, retirada de lá pela imobiliária, nova dona do pedaço. E também de várias outras casas que moradores assustados vão entregando, a troco de promessas de segurança em apartamentos com porteiros eletrônicos. A ocupante foi expulsa como uma gravidez indesejada: melhor ficar o vazio de gente, até que chegue o momento certo da especulação.

Cristina sabe disso e de muitas outras coisas, mas nem sempre diz, tem querer misterioso e teimoso em existir. Traz impressa na testa a marca de quem segue lidando com todas as formas da matéria, cedendo corpo e espírito para o mundo fazer experiência. Se quisesse ela poderia falar dos relevos da cidade, dos cheiros das calçadas, das intimidades alheias de passantes, revelar onde se escondem corujas e pombos, pois dorme um dia aqui outro acolá. Noite e dia lhe são equivalentes perfeitos.

De atropelamentos e de facadas escapou vezes sem conta. É imortal em um presente eterno, que desafia a imaginação, na mobilidade perfeita de quem nada tem. E ainda manja de ecletismo, praticando o grego Heráclito e o brasileiro Antonio Carlos Jobim, no mesmo passo: ninguém se banha duas vezes nas mesmas águas de março.

Laço de fita no topo da cabeça. Cristina mistura a estranha elegância de  uma deusa indiana de pele castanha com o estrépito visual da namorada do Mickey. Nesse desenho animado que ela faz de si mesma há sempre um show diário, serena na hora precisa da atenção, é selvagem com unhas e garras, no território íntimo da pátria dos sem-valia. Aí é preciso mostrar os dentes, como na antevéspera de um sorriso, e preparar a mão dissimulada que afaga e apedreja.

Os amores de Cristina também já foram muitos: teve aventuras brabas, namorados violentos, foi companheira de bêbados, viajou com sócios mesquinhos no barato do pico da veia. Mas agora conheceu rapaz de promessas firmes, ele até tem nota fiscal da bicicleta. Faz gosto ver os dois saindo por aí nas pedaladas, buscando o tamanho dos sonhos no meio do asfalto, ousando ir mais longe do que lhes alcança os braços e permitem esses silêncios noturnos que engolem tantos Tiagos. E lá vai Cristina, sentada rainha no quadro da bicicleta, senhora do asfalto, reverenciada pelo vento que passa manso, alisando-lhe os cabelos.


Paulo Albuquerque, nome literário Paulo Malburk. Já foi filatélico e normativista, hoje é nefelibata e caçador do poético. Crônicas, mini-contos, contos e quase alguma coisa mais. Selecionado em coletâneas nacionais.

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