"O Horror Vive em Nós"
Uma forte neblina fazia com que tudo tivesse um aspecto irreal naquele dia. Talvez eu tivesse esquecido meus remédios também ou acordado no horário errado, mas o que presenciei soava real demais para ser um sonho ou delírio. Em sonhos não sentimos cheiro nem gosto, e o ar naquela tarde chegou a parecer uma espécie de sangue gasoso, era como respirar algo com gosto de ferro vermelho.
A calçada estava praticamente vazia, a não ser por três pessoas que andavam praticamente enfileiradas, com alguma distância de uns quatro ou cinco metros entre si. Era uma tarde fria, nublada, então, sem sol para revelar sombras marcantes; mal notei quando a sombra de cada um deles começou a se mover, em direção àquele mais afastado, ao último da fila, e lentamente as três sombras se uniram em uma e esta se ergueu do chão, adquirindo uma forma indistinta que poderia ser uma nuvem muito baixa ou um manto de trevas com vida própria. A sombra movia-se tão vagarosamente que poderia mesmo ser uma nuvem, pensei. Mas nuvens não arrancam pele humana. Quando a sombra tocou o primeiro da fila, ela se grudou na pele do homem e a arrancou inteira, como se fosse uma meia-calça de corpo inteiro, muito justa e com uma parte interna vermelha e gosmenta.
O homem nem sequer gemeu de dor, continuou andando pela calçada, sem pele, com sangue escorrendo pelos músculos, pela carne exposta. A sombra seguiu em frente e fez exatamente a mesma coisa com as duas pessoas que andavam à frente. Ela parecia absorver a pele deles em meio às trevas, que eram como milhares de micro furacões tão sombrios que tive que desviar o olhar, pois senti uma espécie de tontura ao observá-la, como se aquilo fosse composto de todos os precipícios do mundo e apenas com um vislumbre de mais de um segundo, e qualquer alma estaria condenada à eterna queda. Talvez tenha sido isso o que ocorrera com aquelas pessoas. Mas se caíam, não expressavam em seus olhos vazios e sem pálpebras qualquer agonia, medo, agitação ou dor. Era como se estivessem sedadas pela neblina. O sangue escorria por seus corpos, deixando um rastro vermelho vivo pela calçada, que se misturava à neblina e tornava o mundo vermelho e sangrento. Os corpos sem pele continuavam a andar, com passos lentos, em direção a lugar nenhum. A sombra desapareceu após arrancar a pele do primeiro da fila.
De repente, a calçada perdeu a consistência inerte de rua e começou a se mover. Estávamos então em uma escada rolante, eu e um dos cadáveres móveis sem pele. A criatura estava a uns três degraus abaixo de mim, e a cada vez que ele chegava ao final da escada, alguns de seus músculos e muitas de suas veias ficavam presos na escada, até que eu via o ser mais deformado ressurgir alguns degraus acima, só para chegar ao final e se destruir um pouco mais. O metal frio dos degraus estava coberto de sangue, mas não ecoava um só gemido ou grito de dor. Era como se aquele ser já estivesse morto, apesar de se mover e sangrar e virar seus olhos azuis vivos, um contraste apavorante com a carne que os segurava, quase solta dos ossos. Eu descia da escada e ficava observando aquela cena se repetir.
Até que, quando o que vi era só um tronco com alguns pedaços de carne pendurados e uma cabeça quase esquelética, onde poucos músculos sangrentos seguravam um dos olhos, que segurei aquele cadáver gosmento, vermelho, o tirei da obsessão auto-destrutiva e olhei no fundo de seu único olho sobrevivente. Não queria ter visto o que vi, no entanto, era melhor ver a criatura continuar se despedaçando. Mas vi um reflexo de algo em estado ainda pior do que o cadáver que eu segurava: um esqueleto coberto de sangue, com dois olhos cujas veias pareciam ter explodido, pois eram quase como bolas de gude vermelhas. Somente ao ver no que me tornara foi que me lembrei que aqueles ossos sem vida não tinham força para salvar nada nem ninguém.
Desabei ao pé da escada rolante, deixando o cadáver cair sobre o final da escada, a qual sugara seus últimos fiapos de carne e sangue. O mundo tinha gosto de sangue, um sabor de ferro amargo, único. Meus olhos ardiam, parecia que estavam derretendo.
Eu via tudo vermelho e sentia gosto de sangue quando acordei em uma poça vermelha, meu braço sobre o rosto, uma cachoeira vermelha quase coagulada brotando do pulso. Meus sentidos se esvaindo; trevas e silêncio eram como oceanos gelados contra os quais eu tentava nadar inutilmente; meus movimentos eram fantasmas, inexistentes, me lembrando da estátua de ossos em que eu me tornaria em breve.
O horror vive em nós, é a possibilidade, que se torna obsessão, de criar os piores pesadelos e viver preso a eles até que a loucura atinja tal nível que seja melhor buscar um fim rápido, mesmo que sangrento. O horror é olhar no espelho e lembrar que há uma caveira dentro do seu rosto, e que ela anseia pela luz do dia; logo ela alcançará a luz, logo que seus olhos se apagarem.
Amanda Leonardi |
Amanda Leonardi é Mestre em Letras pela UFRGS e escreve ficção. Já publicou contos e poemas em diversas antologias nacionais, colabora com os sites Nota Terapia e Artrianon e mantém a página @esqueletras onde posta microcontos de terror, resenhas e curiosidades literárias.
Para conhecer um pouco mais sobre a Amanda, escute o episódio do podcast Coletive Som gravado com ela clicando aqui.
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