NAVALHAS AO VENTO

 

COMO RECONHECI UMA VACA (GADO)

Tem dias em que a gente acredita que será tranquilo, uma viagem que eu poderia ficar ouvindo música de olhos fechados, tranquilamente...

Peguei um ônibus na rodoviária de Balneário Camboriú, botei os fones de ouvido e liguei o Spotify. A paz durou muito pouco, logo em seguida uma voz pede licença para entrar para o canto. Era uma senhora, um pouco mais velha do que eu. Mal sentou a bunda na poltrona já estava reclamando de ter sentado em algo duro. Dei um sorrisinho amarelo. Minha vontade era perguntar se ela não gostava de sentar em coisa dura, mas resolvi ser educada e nada falei.

- Que porcaria isso... porque tem que ter esses cintos nas poltronas? A gente acaba sentando em cima... – reclama a “Idosa” (na minha opinião, idosa é aquela que só sabe reclamar e velha é aquela idosa que deu certo, alegre, faceira, de bem com a vida).

- O cinto serve para ser colocado em torno da barriga, serve para te proteger. – Falei com ironia.

- Bobagem, eu não uso isso...

Estávamos na parte de cima de um ônibus de dois andares e falei que era perigoso, pois numa freada ela poderia voar pelo vidro.

Estávamos na parte de cima de um ônibus de dois andares e falei que era perigoso, pois numa freada ela poderia voar pelo vidro.

- Bobagem, nunca voei pelo vidro e nunca usei cinto.

Fechei os olhos e fingi que ia dormir. Ela continuou...

- A mesma coisa com as máscaras, nunca usei aquelas porcarias. Peguei Covid e me curei com Cloroquina. Desnecessário usar máscara, todos iam pegar mesmo... e ninguém espeta vacina em mim... não sou louca... botavam chip nas pessoas...

Tentei dormir novamente. Seria uma viagem de nove horas e eu não estava com vontade de brigar. Mas a idosa tinha outros planos e mais uma vez me cutucou. 

- O prefeito da minha cidade é corrupto. Recebeu uma verba federal e levou todo o dinheiro para casa. Fez até um quarto para esconder o dinheiro, mas um vizinho desconfiou e chamou a polícia federal que invadiu a casa dele e descobriu o dinheiro escondido. Ele está inelegível por estupro de enteada, mas se elegeu novamente porque é corrupto.

Daí minha paciência é que saiu pelo para-brisa.

- Para de mentir. Tu só está falando isso porque o fulano é do PT. Eu conheço o fulano e ele não é corrupto nem está inelegível. Muito menos estuprador. Vocês ficam falando mal de todos os políticos petistas mesmo sem provas.

- Todo mundo fala que ele levou o dinheiro para casa...

- Só se fosse idiota para levar dinheiro em espécie para casa... Isso é fake, para de falar merda.

Ela pegou o celular e, como se tivesse visto alguma notícia nova...

- Tinha que ser pai de santo. Essa gente não presta...

– Eu sou mãe de santo... – retruquei num tom de voz mais alto que o normal e fuzilando a pessoa com o meu olhar.

- Ah, mas porque vocês cultuam o diabo e ficam fazendo mal para as pessoas de bem?

- Não acreditamos em diabo, senhora. Isso é criação da religião de vocês, não da nossa.

- Esse motorista está indo devagar demais. Não sabe dirigir? Ou é negro fazendo “negrice”...

- Isso é racismo e intolerância religiosa e eu posso lhe dar voz de prisão e chamar a polícia para a próxima rodoviária...

Ela ficou quieta e eu achei que poderia ter paz. A moça do outro lado do corredor bateu no meu braço e disse rindo:

- Não adianta pedir, não troco de lugar contigo...

Rimos as duas...

- Tu viu o que estão fazendo contra Israel?

- E o que Israel está fazendo contra a Palestina?

- Ah, mas Israel é o povo escolhido por Deus...

E começamos um debate sobre a guerra.

Já perto de Osório ela me cutuca e diz:

- Esse Lula é mesmo um filho da puta. Ladrão, assassino...

Interrompi ela com um grito:

- Cala a boca, velha idiota... – todo o ônibus acordou – Para de cagar pela boca. Me responde uma coisa, tu és bolsonarista?

- Como é que tu adivinhou?

- É óbvio. Nega a segurança da vacina, das máscaras, do cinto de segurança. Usa cloroquina, espalha fake News, mente com relação a um político do PT, é crente, defende o massacre que Israel está fazendo e odeia o Lula. Vocês são acéfalos, idiotas e filhos da puta. Sua vaca, vai procurar tua manada... Me deixa em paz.

Quando desci em Gravataí todos os passageiros me olharam. Não sei se concordavam com ela ou comigo e eu não estava nem aí para a opinião dos passageiros. Dei meu recado, fiz aquela idiota calar a boca na marra.

Estou cansada de gente burra, cansada de ter que esfregar a verdade na cara deles. Cansada de mostrar o óbvio... Cansada desse modo insano de fazer política. Por outro lado estou feliz... feliz por estar do lado certo da história... Não porque somos perfeitos, mas porque não somos perversos...

Ao descer do ônibus me despedi do motorista, agradeci, desejei boa viagem e disse rindo:

- Tu poderia ter dado uma freada... só uma... seria divertido...

Ele não entendeu nada... mas eu dobrei na Avenida José Loureiro dando boas risadas, imaginando como seria engraçado se ela desse de cara no para-brisa...

Isab-El Cristina Soares
Isab-El Cristina Soares é poeta, membro do Clube Literário de Gravataí, autora de 6 livros.  Graduada em Letras/ Literaturas, pós-graduada em Libras.

Escute o episódio do podcast Coletive Som gravado com Isab-El , clicando Aqui.

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