DEAMBULÂNCIAS

 Meu tio nu

Nunca esquecerei o espanto indignado de minha avó, já bem idosa, ao receber o irmão em visita e ouvir dele que todo dia dormia sozinho, no longínquo sítio em que morava. E nu. Completamente sem roupa.

Não foi a solidão em que ele vivia nem o fato de ser um lugar ermo e sem cuidados que a incomodou, mas sim a preocupação fundamental de manter-se irrepreensível até as últimas consequências. De cumprir o código moral de guardar-se e, sobretudo, não premiar a curiosidade alheia. Daí ela falou:

- Mas Humberto, e se você morrer durante a noite e lhe encontrarem assim, nu?

Meu tio-avô riu, gostosamente. Já não estava nem aí, como se diz. Tinha transcendido vergonhas, próprias e alheias. Em resposta apontava o próprio antebraço, dando-lhe leve tapa, fazendo balançar carnes de muitas histórias vividas: quem teria interesse em ver isto?

Segui esse movimento de vai e vem das peles frouxas, curioso acerca das possibilidades humanas. Aos meus olhos juvenis, o auto comentário do tio ganhava um sentido a mais, sugeria haver um tempo de aniquilação de todas as vaidades, e portanto era preciso antecipar-se para ao menos sabê-las, se amargas ou doces.

Mais que dois irmãos, eles pareciam vir de mundos diferentes. Enquanto meu tio-avô tentava se adequar ao exílio masculino de glórias e cargos passados, a avó confirmava o que lhe ensinaram desde menina, abrigada na casa dos pais contra outras visões de mundo: tempo de mulheres educadas para ocupar lugares de renúncia

Esse tio foi socialmente visto e considerado. Chegou-me como personagem de histórias de homem valente e competente profissional. Já minha avó era parte de um mundo pacificado, desde sempre dona de casa discreta, mas firme, mesmo em épocas difíceis. Após a morte do marido, passou a andar com as chaves da dispensa no bolso, esticando provisões para o s longo demais, pronta a resistir.

Tempos depois, eu criança a seguia pela casa, feito sombra duplicada, sacristão da cerimônia diária de abertura de portas e de armários. Era ainda forte a memória da escassez, mesmo em tempos agora melhores: ensinara-lhe a guardar de tudo, de jornais velhos a barbantes, em estado de prontidão para utilidades novas por serem descobertas, no despertar da hibernação das coisas. Algo de mim ficava também nesse mistério de objetos guardados com cuidado, encapsulados em velhas latas de biscoito inglês.

Então vieram os dias de partida desses dois irmãos, cada qual a seu tempo e modo. Ela foi por último, fez-se parte da casa imaginária, de muitos cômodos, onde vão habitando meus mortos em condomínio. De vez em quando a revejo nos corredores, imito-lhe as buscas nostálgicas de armários e de objetos cúmplices, em diálogo surdo com o tempo. Porém com meu tio é diferente: ele subverte minha posteridade. É meu fantasma irreverente e imprevisível, sugere ideias inconvenientes e guarda sorrisos secretos. Flutua desapegado de si, na liberação atrevida que a nudez se permite dar.  

Paulo Malburk

Paulo Albuquerque, nome literário Paulo Malburk. Já foi filatélico e normativista, hoje é nefelibata e caçador do poético. Crônicas, mini-contos, contos e quase alguma coisa mais. Selecionado em coletâneas nacionais.


"Quanto mais arte, menos violência. Quanto mais arte, mais consciência, menos ignorância."
- Ricardo Mendes

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