NAVALHAS AO VENTO

 

ROUBARAM A HISTÓRIA DA MINHA CIDADE

Na escola eu nunca fui muito boa em história, mas quando vim morar em Gravataí foi a história da cidade que me encantou. Passear pela cidade, pelas praças, lendo as plaquinhas de identificação parecia uma colcha de retalhos que eu ia costurando e me apropriando da história da nossa Aldeia dos Anjos. Em cada esquina um “anjo” se desvendava e tudo fazia sentido. A cidade, por si só, era um belo livro didático.

Nas últimas décadas do século passado, período em que a nossa história ficou ainda mais transparente, fui transferida para a cultura e vi o grande livro chamado Gravataí ser transformado em enciclopédia pela batuta da Fundação Municipal de Arte e Cultura, a qual tinha o maior orgulho de fazer parte. A cidade cresceu mantendo a identidade de aldeia e isso era fascinante para quem aqui chegava: ver uma cidade em ascensão mas respeitando a peculiaridade bucólica nos casarios, praças, sobrados e receptividade das pessoas.

O texto “O mistério sumiço das placas em Gravataí”, escrito pelo amigo Nestor Medeiros me levou às lágrimas. Fazia tempo que as segurava, mas ler o que estava sendo sufocado no meu peito doeu muito. Posso dizer que sou mais gravataiense do que muitos que aqui nasceram. Eu realmente amo cada centímetro deste chão. Mesmo não sendo boa na matéria quando estava na escola, eu me apropriei da história desta cidade porque queria entender o porque de cada pedra estar naquele lugar, cada prédio e sua importância para a nossa identidade...

Hoje eu não encontro mais a “minha cidade” (sim, minha, tem gente que mal conheceu um ou dois bairros e recebeu o título de cidadão gravataiense e eu que amo este chão morrerei sem poder dizer que sou gravataiense? Não mesmo. Digo com orgulho que é “minha cidade”, mesmo toda descaracterizada  como está e mesmo nunca sendo oficialmente reconhecida), mas voltando ao assunto principal, esta cidade não é mais a Aldeia dos Anjos. Muitos tentam menosprezar, dizendo que isso é progresso, eu digo que é retrocesso. E o Nestor, como bom professor de história que é, explica muito bem na sua crônica, pena que poucos estão dispostos a entender a lição. Ele cita a destruição das casas antigas para a construção de prédios de aço e vidro, sem graça, sem vida; as pedrinhas coloridas portuguesas das calçadas, arrancadas para dar lugar ao cinza do cimento de má qualidade que impermeabiliza a cidade provocando alagamentos e torna as calçadas escorregadias; o prédio da Rodoviária com toda a sua história foi derrubado na calada da noite de um final de semana após a intenção do tombamento histórico vir a público e a cerâmica pintada a mão ser transformada em cacos, em lixo.

Mas o que mais me dói foi o extermínio de praças, derrubada de árvores centenárias (inclusive três exemplares de pau-brasil que simplesmente sumiram) para a construção de um shopping no “meio da rua”, onde os responsáveis vendem a ideia de uma rua coberta para enganar os idiotas que babam diante da hipocrisia. Sim, é patético ver as pessoas preocupadas com a estátua que um cidadão colocará no pátio de sua própria casa e não reclamar da via pública que foi transformada num shopping, na verdade um “mall”, para beneficiar meia dúzia de investidores, roubando o direito do cidadão de transitar, uma vez que a “rua” mantém as portas fechadas durante a noite e toda a manhã. Desde quando rua tem portas? A rua coberta poderia se chamar Rua Privada. O metido a rico quer se sentir em Gramado e para isso deixa venderem sua cidade numa boa, só para arrotar que aqui parece Gramado. Lembram da árvore centenária do Parcão que foi arrancada para a instalação da parada de ônibus?

Pois então... não havia outro lugar? Tinha que ser justamente naquele ponto?

Cada vez que passo pela antiga Praça do Museu sinto imensa dor no peito ao ver aquela santa de costas para o rio... oras, em que outra cidade se vê uma santa dar as costas para o rio? Se é o rio que mantém a cidade viva o mínimo seria a santa estar de frente para ele, numa espécie de saudação e não dando as costas... E o acervo que ali existia está fora do alcance dos nossos alunos, bem como o acervo do Museu Municipal Agostinho Martha que já foi praticamente destruído pela falta de cuidado. Quando passo pelo Quiosque vejo uma cópia patética de um clube aquático de quinta categoria, com suas cores ridículas se sobrepondo ao antigo projeto clássico que desde 1972 mantinha uma cor sóbria, cercada pelo verde muitas vezes chamado de “pulmão do Becker”...

Pior ainda é tentar apagar a história de outras pessoas... a exemplo disso o Nestor citou que membros da institucionalidade oficial, exaltando a cultura açoriana (não querendo diminuir o valor da mesma, pois sei da importância deste povo) chegaram a dizer em um evento que “somos todos açorianos”... como assim? E onde ficam os índios e negros que tanto contribuíram para a criação da Aldeia? Ah, esqueci... eram apenas escravos... não merecem citação... Opa! Sinto cheiro de racismo?

A nova geração não sabe quem fez o Parcão, se um dia houve rodoviária na cidade, o que era o Aldeião e para que servia, não sabe porque o prédio que hoje abriga a Casa dos Açores está em pé e nem quem lutou por este prédio... Não existe mais placas de identificação nos monumentos e muitos monumentos já desapareceram e em breve poderemos encontrar bustos de políticos atuais ou de um radialista que pensa ser dono da cidade ou de um comerciante que pensa que é rico...

Esse texto não é para ter cunho político, mas tudo na vida é política. As últimas gestões não deram a mínima importância para nosso passado. Estão imprimindo outra cara a nossa cidade e nessa impressão não existem negros nem índios, como já relatei antes, só tem açorianos. Em outubro temos que pensar muito no futuro da nossa cidade, mas principalmente no passado dela. Estamos sendo cúmplices do maior assassinato histórico e ao mesmo tempo aplaudimos a venda da via pública. Assistimos aos jogos olímpicos na TV e aplaudimos a extinção do nosso ginásio de esportes transformado em feira para que uns poucos privilegiados comprem tomate e cebola...

Temo pelo dia em que ouvirei minha neta perguntar: “-Vó, que cidade era essa? Nestas fotos tem tantas árvores... em Gravataí só se vê aço e vidro...”

Nestor, teu texto me fez pensar e chorar. Gravataí está morrendo nas mãos de políticos incompetentes e tem gente que aplaude... Triste... muito triste...

Para ler o texto de Nestor Ourique Medeiros,
clique AQUI


Isab-El Cristina Soares


Isab-El Cristina Soares é poeta, membro do Clube Literário de Gravataí, autora de 6 livros.  Graduada em Letras/ Literaturas, pós-graduada em Libras, é Diretora Cultural do ColetiveArts.

Escute o episódio do podcast Coletive Som gravado com Isab-El , clicando Aqui.

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16 Comentários

  1. Maravilhoso texto dessa poetisa em prosa. Uma denúncia forte que deve inquietar as nossas almas e mover as nossas consciências.

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    1. Oi, sou a Isab-El. Obrigada pelo retorno. Temos que denunciar, gritar... é para isso que temos a arte, né?

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    1. Oi, Marli, sou a Isab-El. Obrigada pelo retorno.

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  3. Muito bom o texto gostei

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  4. Que texto sensível Isab, triste mas emocionante! Tu, minha poetinha, é necessária! Esse texto deveria ser trabalhado em sala de aula!Bora que a vida quer da gente, coragem💜

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    1. Oi, Marzie, sou a Isab-El. Fico muito feliz com teu comentário. É necessário usarmos a arte para denunciar, gritar, tornar público. Obrigada pelo carinho.

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  5. @⁨Isab-El Soares⁩ é uma merda tudo isso, e o que mais incomoda é que a chance de mudança passa pela urna, mas boa parte do eleitorado só está aqui há pouco tempo e não conhece a verdade. Já os antigos moradores sofrem de amnésia, não exatamente, o racismo sempre existiu muito forte aqui e eu lembro cada ato sofrido na pele. Mas existe um esquecimento proposital com a criação de novas lendas e atualização das tradições (se é que isso é possível), a ponto de confundir e enganar, e para a "manutenção terceirizada" da destruição da história e do patrimônio. As tais façanhas...
    Parabéns @⁨Isab-El Soares⁩
    Waldemar Max - Artista Visual

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    1. Oi, Max, sou a Isab-El. A única chance de mudança passa pela urna, sim. Mas quem deveria ler estas críticas fica apegado em fake news e watts app. Além disso os que apoiam este tipo de destruição são os mesmos que sabem juntar letrinhas, mas são incapazes de interpretar um texto. Além de julgarem que história é mimimi. Obrigada pelo retorno.

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  6. Nasci e cresci nesta cidade, vivo aqui há 40 anos. Não há como não politizar essa questão. Privatizaram e elitizaram espaços públicos nos quais brinquei na infância. E hoje só sobrou lugares para consumo que enriquecem apenas seus proprietários e nada sobrou para ser guardado na memória afetiva da geração atual.

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    1. Oi, Camila, sou a Isab-El. Realmente, cidade elitizada, sem calor humano, sem pessoas, sem história, sem vida. Triste... muito triste. Obrigada pelo retorno.

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  7. Bah, Isab!
    Quanta verdade em tua crônica!
    Eu saí da cidade, mas deixei um pouco de minha alma por aí, em cada praça desrespeitada, em cada árvore arrancada, em cada espaço público usurpado,em cada projeto cultural apagado e sinto uma dor funda pela nova realidade imposta com o extermínio do real e de um lírico passado, agora oficialmente apagado.
    E esse MALLdito aleijão, encravado bem no coração daquela que já foi a Praça principal da cidade, é praticamente uma assinatura dos 'novos tempos'.

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    1. Oi, Rosinha, sou a Isab-El. Novos e sombrios tempos. Eu choro pelo nosso passado e pelo futuro que não teremos. Bem colocado quando escreves MALLdito governo que destroi tudo o que tanto preservamos. Obrigada pelo carinho.

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