O UNIVERSO CONTA

 Na penúltima plataforma da estação 

de trem da cidade

Parte -1

“Faz um tempão que não vejo teu rosto, encontre-me amanhã na estação, às quinze horas!”. Li e reli algumas vezes antes de guardar o papel dentro da única gaveta com fechadura da minha escrivaninha, chaveei e escondi a chave, como sempre - não havia privacidade no meu quarto e aquela gaveta era o único lugar o qual não se atreviam a abrir, por enquanto. Ainda não estava com coragem para jogá-lo no lixo, talvez ele nem ganhasse esse destino e eu estava só me enganando, pretendia mesmo guardá-lo, era uma lembrança dele. Perdi algum tempo procurando as chaves de casa, eu as perdia sempre antes de sair de casa. Deixei as janelas encostadas de modo que pudesse entrar um ar, sem deixá-las escancaradas, pois não sabia que horas eu iria voltar. Finalmente encontrei as chaves e saí.


O trânsito estava comum, mas o motorista do ônibus dirigia de modo incomum – muito lento! – várias vezes tive vontade de ir até ele e perguntar se estava com medo de dirigir. As horas passavam e não passavam, tudo ia tão depressa e não ia, eu queria vê-lo e não queria. Era a confusão de sentimentos que essa afeição me trazia, amor e ódio, juntos, com tantas outras variantes. Não os notava até que, horas  antes dos nossos encontros, elas vinham em peso, como uma onda opaca, imensa, quebrando sobre o corpo. Ele tinha o dom de me puxar para essa confusão. Suas palavras sempre caiam densas, como xarope antigo. Suas ideias tão racionais e cruas em contraponto ao seu medo da velhice me assustavam. Seus cabelos, um tanto compridos, estavam sempre jogados sobre os olhos, como se escondesse o rosto dos indignos de vê-lo, ele sempre me passava um “ar” de arrogância - era uma de suas marcas inconfundíveis, assim como seus óculos posicionados na metade do nariz. Ele falava olhando por cima deles. Era simples em suas roupas e ainda conseguia ser tão “certinho”, o jeito delicado de agir, calmo, metódico, tão “limpinho” que dava vontade de escabelá-lo só para ver alguma desordem naquela ordem. Balancei a cabeça rindo de mim mesma, tive vontade de descer do ônibus algumas vezes e voltar para casa. Nos conhecemos há tanto tempo e jamais pude dizer o que sentia, tão platônico quanto o entendimento de direção daquele motorista de ônibus!

Enfim cheguei na estação, que estava um pouco diferente do que eu me lembrava. Na última vez que estive nela eu tinha 11 anos, brincava com os milhares de papeizinhos guardados nos vários bolsos da minha japona vermelha, ainda lembro do cheiro do tecido impermeável para a chuva, os vários bolsos espalhados e os cordões do capuz totalmente disponíveis para brincar e colocar na boca, enquanto minha mãe comprava os bilhetes do trem. Eu tinha essa mania e não me lembro quando a perdi, guardava todos os papéis de propagandas, que me entregavam, nos bolsos da minha japona vermelha. Depois eu gostava de abrir os bolsos, quando estava sozinha no meu quarto, abrindo cada papelzinho como se fossem mapas de algum tesouros guardado há anos. Era uma euforia no meu coração! Cada papel me enviava para um mundo diferente, o qual só eu tinha acesso. Sempre foi assim, eu e um mundo muito único. Alguém seria capaz de entrar nele algum dia? Agora recuso todos os papéis que me oferecem na rua, para evitar que o vício volte. Se não consigo recusar o papel de alguém, finjo que guardei e coloco no lixo ao dobrar a esquina, para não deixar a pessoa magoada.

A estação de trem mudou de iluminação e tamanho, em comparação a minha lembrança. As cores anoiteceram dando um aspecto de cripta úmida e a descida das escadas ficara mais estreita. Tinha limo nas laterais? Uma população descia e outra subia, assim como minha tontura ia e vinha. Era o calor? Tropecei e quase cai nos últimos degraus, olhei em volta para ver se alguém me observava e fiquei vermelha só de pensar em quantos riam de mim nos cantos dos lábios, fingindo não terem notado, enquanto subiam os degraus da escadaria principal.

Caminhei o imenso saguão, um corredor redondo que parecia um buraco cavado pela minhoca mutante, e, no fim deste, ele vinha com seu andar manso – peculiar –, pisava no chão como se tivesse cuidado para não machucá-lo, eu podia reconhecê-lo até naquelas brincadeiras de “encontre o personagem no meio da bagunça”, que vinham nas revistas infantis. Eu sempre reconhecia aquele andar! Cumprimentamo-nos distantemente, eu tive tanta vergonha de me aproximar para um aperto de mão ou algo assim, sempre tive medo de tocar nas pessoas, como um bichinho assustado, como se pudessem arrancar um pedaço de mim.


Continua no próximo sábado!

Miriam Coelho


"Quanto mais arte, menos violência. Quanto mais arte, mais consciência, menos ignorância."
- Ricardo Mendes

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