Deuses das pequenas coisas
Ele segurava um cartaz, tentando captar a atenção dos passantes: “todo mundo quer gelinho, mas ninguém quer encher a forminha”. Pensei: era um protesto, uma confissão, ou nada disso? Seria alguém que se arrependia das vezes em que não cumprira o líquido dever, falhando assim consigo e com o próximo? Estaria implícita na manifestação uma proposta de superar queixas e desconfianças mútuas, para resolver de uma vez por todas a eterna questão de encher a forminha? Ou seria uma mensagem de precaução, acerca da importância de resolver pequenos conflitos, antes que eles se tornem grandes?
Não pude resistir a essa imagem; ela seguiu comigo em minhas divagações. Em seu desprendimento performático o manifestante parecia nos retratar a todos como seres estagnados, presos em compartimentos de tempo e de espaço, esquecidos do que temos em comum. A forminha de gelo representaria, assim, as tantas almas solitárias que proliferam pelos espaços urbanos, dedos em riste, prontos a fazer rolar as telas sem fim de seus celulares. Vontades tornadas acessórias de olhos cegos de tanto ver notícias desesperadas sobre escândalos, guerras, famas passageiras e multibilionários de absurdos poderes.
Quem sabe se ao invés de morar em bolhas e grupos de internet pudéssemos assumir o vazio de nossos desejos, questionar a nostalgia por acolhimento, redescobrir o valor da autenticidade? A forminha de gelo se tornaria então um modelo de cuidado e de confiança: a recompensa de chegar em casa, depois de um dia longo de tarefas por cumprir e abrir o congelador, na certeza de encontrar uma pedrinha de água gelada, disponibilizada por alguém. Eis a questão fundamental, a líquida promessa por tornar-se sólida realidade: se queremos ser cuidados, temos de cuidar uns dos outros.
Dá o que pensar essa capacidade transformista da água, sempre a mesma, ainda que por diferentes formas. Condição de vida, mas que em excesso mata; afunda corpos, mas também os faz flutuar – e até mesmo deixa andar sobre si (desde que na temperatura certa). A água esbanja plasticidade, adapta-se a todos os recipientes; aceita curvas poéticas de canais e de rios, mas também rebela-se, desafia contenções e demarca territórios. Está lá de novo quando falamos de sociedades “líquidas”, escoando ilusões de estabilidade de antigos direitos e garantias, a se desfazerem, antes que novos formatos se estabeleçam.
É preciso atentar para o que diz o cartaz, enxergar para além de nosso gelinho narcisista. Fazer como sempre fizeram os poetas: habitar o cotidiano como novidade de saber ver, renovar gestos de compromisso com a vida, incorporar o outro em sua alteridade. É líquido e certo: nunca foi tão urgente contemplar a criança sorvendo o mundo com os olhos; libertar a palavra de incentivo e o sorriso de acolhimento; encontrar pontos em comum, praticando a arte de ouvir e o amor pela cidade. Não, não deixemos a forminha esvaziar, por mais que nos distraiam tarefas sem sentido e a gravidade de nossas preocupações. O melhor de nós está em compartilhar: é quando as pequenas coisas se fazem habitar por deuses, no infinito de grandiosidade de que é feito o mundo.
Paulo Malburk |
3 Comentários
Adorei toda a comparação da água com as nossas vidas atuais. Muito bom!
ResponderExcluirMuito bom Paulo, sempre lhe admirando mais em tdo q escreve.
ResponderExcluirMuito obrigado! É bom saber que partilhamos sentidos e crenças!
Excluir