A Auxiliar de Limpeza
Verena Hesse sente-se desconfortável naqueles trajes do século XIX, que apertam e desmerecem as formas femininas, sobretudo aquele casacão. Entende que era assim que as mulheres de uma aldeia no interior da Alemanha se vestiam e que o clima era muito frio na maioria do tempo. Também sabe que a sua ascendência germânica, que lhe deu longos cabelos louros, presos num coque e olhos azuis, lhe confere uma vantagem natural, mas espera não ter que se demorar muito nesse lugar.
Ela avança pela zona rural por uma estrada de chão cercada por campos, florestas e pequenas fazendas distantes uma das outras. Depois de meia hora da caminhada sem enxergar uma viva alma, à exceção de alguma vacas pastando, ela vê mais adiante a sua direita uma pequena propriedade. Ela se aproxima e vê uma mulher de constituição física forte, saindo da casa carregando uma grande tina de madeira e se dirigindo para os fundos do terreno. Verena se esconde atrás de um grupo de árvores e fica observando. O céu tem uma predominância de nuvens com espasmos solares e a temperatura está caindo. Ela esfrega as mãos, troca o peso do corpo de um pé para o outro e agora reconhece o valor do casacão. Então ela vê um menino de cerca de sete anos de idade, saindo da casa carregando livros. Ela recua mais um pouco e observa o menino sair por um portãozinho ao lado da porteira e seguir adiante pela estrada. Verena observa o menino se distanciando e então o segue.
Ambos caminham pela estrada que é margeada pela mata em ambos os lados. O menino segue uns trinta metros à sua frente e ainda não percebeu a sua presença. Ela apressa o passo, se aproxima e o menino ouve, para e se volta para ela. Verena sorri para ele e fala pausadamente. (Todos os diálogos e falas estão no idioma alemão):
- Olá. Eu estou perdida. Não conheço muito essa região. Onde fica a aldeia mais próxima?
O menino aponta com o braço para a direção em frente.
- Você está indo para a escola?
Ele assente com a cabeça. Verena se aproxima mais.
- Então posso caminhar junto com você?
O menino fica olhando para ela, que abre um sorriso.
- Eu vou trabalhar na escola. Auxiliar de limpeza.
Então ele assente, se vira e segue o caminho. Ela apressa o passo e emparelha com ele. Eles seguem caminhando lado a lado e ela pergunta:
- Como te chamas?
- Adi.
- Eu sou a Verena. Acho que vamos nos ver bastante na escola.
Ele olha para ela, que devolve o seu melhor sorriso, que já lhe abrira muitas portas em sua carreira. O menino se mantém sério, avança mais um pouco e diz :
- Eu gosto de desenhar e pintar.
- Tem algum desenho para me mostrar?
Ele assente, ambos interrompem a caminhada. Ele abre um dos livros, puxa uma folha de papel e mostra para ela. Verena elogia o desenho, sobretudo a qualidade da combinação das cores e ele volta a guardá-lo, esboçando feições de satisfação.
Então ela olha para ambos os lados da estrada e não vê ninguém. De súbito e com agilidade, ela vai para trás do menino, já colocando uma das mãos pressionando a boca e abafando os gritos. Ela ergue o menino, que deixa cair os livros, a folha de papel com o desenho se desprende e traça um voo irregular até o chão, enquanto ela começa a arrastá-lo para dentro da mata. Ele se debate, mas ela é alta e forte está movida por muita adrenalina e leva o menino esperneante cada vez mais para dentro, se afastando bem da estrada. Ela atira o menino de costas no chão e monta sobre ele. As faces de Adi estão enrubescidas numa máscara de ódio. Ele grita:
- O que você está fazendo?
Verena coloca um dedo esticado sobre os lábios e sibila o som pedindo silêncio. Ele tenta se desvencilhar e não consegue. Olha com raiva para ela.
- Você não é nenhuma auxiliar de limpeza!
- De certa forma eu sou. Mas é melhor me chamar de Anjo.
- Anjo???
- Anjo da Justiça!
Ela saca um punhal debaixo do casaco e o encosta na garganta do menino.
- Ou talvez eu seja o Anjo da Morte!
Verena pressiona e passa o punhal de um lado a outro da garganta dele, fazendo escorrer um “babeiro” vermelho. O menino está de olhos arregalados, ainda se debate por instantes e logo cessa. Ela fixa o olhar no rosto dele por alguns segundos, então se ergue, vai até uma árvore e passa a lâmina com respingos rubros em algumas folhas, guarda o punhal, olha bem a sua volta, gira o corpo e adentra ainda mais na mata.
Ela para numa pequena clareira, retira do bolso do casaco um dispositivo pequeno, semelhante a um controle remoto e o aponta para a sua frente. Logo o ar começa a tremular e uma linha vertical se forma e logo vai se alargando. Verena se adianta, passa o corpo pela abertura, que logo fecha. A linha vertical some.
A mata fica silenciosa e se alguém estivesse ali, sentiria apenas um cheiro exótico àquela natureza, como se algum elemento químico tivesse queimado.
Verena está vestindo um robe e admirando a espetacular vista urbana noturna de uma sala de estar ampla e com uma decoração minimalista moderna. Ela dá as costas e se dirige à um pequeno bar, onde se serve em um copo baixo, de uma generosa dose de um whisky envelhecido muitos anos em barris escoceses. Ela bebe e levando o copo, percorre um corredor até o seu escritório.
É um espaço retangular de um bom tamanho dominado por uma grande escrivaninha de madeira, com destaque, na parede atrás, para o quadro do diploma de pós-doutorado em Física Quântica. Nas outras paredes há armários e muitas prateleiras com livros.
Ela se dirige até um dos armários encostado numa parede menor, coloca uma das mãos por dentro e logo se ouve um estalo forte e um dos cantos do armário se desloca para frente. Ela arrasta esse lado do armário, revelando uma porta. Ela abre a porta e entra numa sala pequena que conta apenas com uma mesa, uma cadeira e um grande painel de cortiça vazio. Sobre a mesa há um volume encadernado, como um álbum de fotografias, em que ela abre e em meio à outras fotos em p&b retira uma, a leva até o painel, a fixando com um alfinete. Ela retorna à mesa, bebe mais um gole do malte aveludado, larga o copo e apanha de um porta- canetas comprido, um pincel atômico vermelho.
Verena se aproxima da parede e para bem em frente à foto. De perto se percebe que é o mesmo menino que encontrara. Ela sorri e risca um “X” vermelho sobre a foto e proclama com ênfase:
- Auf Wiedersehen, Adolf!
João Luís Martinez |
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