Nesse momento histórico em que os católicos de todo mundo ainda se congratulam com a ascensão do Cardeal Robert Francis Prevost ao Papado, como Papa Leão XIV, julgo importante abordar esse tema que mostra que entre os cristãos, sempre houve quem usa a religião para outros fins.
Há pouco mais de 60 anos foi colocada em prática pelos EUA, uma guerra psicológica alicerçada na religião com o objetivo era deter o avanço do comunismo no mundo, em particular na América do Sul. Assim foram enviados ao Brasil milhares de missionários de religiões, seitas evangélicas e católicas, judeus conservadores e até mesmo membros de empresas privadas com a missão de popularizar versões reacionárias da fé cristã, com consequências que se estendem até os dias atuais nos corações e mentes dos brasileiros.
Antes de avançarmos, é importante observar que esse combate ao comunismo, no contexto da guerra fria era compreensível, embora os meios fossem reprováveis. O incompreensível é que nos dias atuais ainda se fale de um temor e se use o conceito como forma de ofensa. Afinal, de quatro décadas para cá o Muro de Berlim foi derrubado, a China se abriu para o mercado capitalista, a Coréia do Norte se isolou numa ditadura patética e Cuba administra as suas precariedades pelo turismo. Não há contexto histórico que sustente o uso recorrente das palavras comunismo e comunista atualmente, que não seja fruto da ignorância, da má intenção ou de ambos.
Retornando ao foco dessa coluna, essas informações sobre a guerra psicológica alicerçada na religião, fazem parte de uma ampla pesquisa para a tese de doutorado de Rodrigo de Sá Netto para o programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense.
Houve uma investigação com cinco anos de duração em que o Doutorando pesquisou em arquivos público brasileiros e norte-americanos, teve acesso à documentos do Serviço Nacional de Inteligência (SNI - depositados no Arquivo Nacional do Brasil) e da Central Intelligence Agency (CIA), bem como no National Archives and Records Administration (NARA) onde pesquisou os arquivos dos presidentes norte-americanos.
Concluída a Pós-Graduação, Rodrigo dedicou-se a ampliar a sua pesquisa e no início desse 2025, foi lançado o livro “O Partido da Fé Capitalista” pela editora Da Vinci Livros, em que o autor faz um relato digno de um filme de teorias conspiratórias, mas que mostra e comprova a existência de um projeto geopolítico real, que foi implantado com a ajuda do governo militar brasileiro.
O plano teve início em 1954 nos EUA com a criação da Fundação para a Ação Política e Religiosa na Ordem Civil e Social (FRASCO), que congregava religiosos de diversas denominações, sobretudo evangélicos, que são a maioria nos EUA, mas também católicos conservadores e judeus.
A FRASCO financiou essa operação, junto a outras agências estadunidenses, majoritariamente conectadas à políticos Republicanos, mas também alguns Democratas.
Conforme o autor historiador: “A estratégia também envolvia empresários, agentes governamentais, líderes religiosos e intelectuais estadunidenses, que contataram os seus pares no Brasil e demais países latino-americanos. Era um esforço para formar uma frente religiosa internacional anti-comunista e pró- capitalista, defendendo os pressupostos do livre mercado e da liberdade norte- americana, em contraste com o que seria o ateísmo e o planejamento econômico comunista, onde supostamente não haveria liberdade sequer para se professar a religião”.
Foi então que as maiores e mais poderosas igrejas pentecostais norte- americanas foram fundadas aqui no Brasil, como a Igreja do Evangelho Quadrangular (1923) que chegou por aqui em 1951, abrindo caminho para outras, fundadas no Brasil por pastores norte-americanos, como a Igreja da Nova Vida, ou por pastores brasileiros que tinham passagem por igrejas norte-americanas, como a Igreja Deus é Amor e a Brasil para Cristo e alguns anos depois, a maior de todas: a Igreja Universal do Reino de Deus. Nas palavras de Rodrigo: “o Edir Macedo aprendeu muito, pegou a fórmula e transformou em uma franquia com traços brasileiros e adaptações muito efetivas. Mas a matriz de pensamento é toda estadunidense”.
A estratégia do governo norte-americano também foi enviar ao Brasil, organizações missionárias em massa. Um documento de 1961 do Conselho Nacional de Segurança, encontrado pelo autor, comprova que em 1957 havia um número incalculável de missões evangélicas estrangeiras na Amazônia. O filme “Brincando nos Campos do Senhor” (1991) de Hector Babenco aborda esse tema.
Já o documento, comprova que essas missões tinham por trás a organização da CIA e promoviam o garimpo ilegal, a destruição da cultura indígena e o tráfico de drogas.
A partir do golpe militar em 1964, o governo brasileiro viu com bons olhos esse modelo de expansão capitalista e uma simpatia pela presença dos evangélicos pentecostais por aqui. Em um relatório de 1974, o Comando Militar da Amazônia admitia haver: “uma complacência e até mesmo apoio das autoridades municipais, estaduais e federais em relação aos missionários”. O governo militar ditatorial tinha uma predileção por missionários evangélicos sobre os católicos, pois consideravam que os católicos agiam sobre a influência da “Teologia da Libertação” e procuravam conscientizar os índios sobre os seus direitos.
Os documentos comprovam que a Igreja da Unificação também foi protegida pelos militares aqui no Brasil. Esse era o nome “comercial” da Associação das Famílias para a Unificação e Paz Mundial, fundada na Coréia do Sul em 1954 pelo Reverendo Moon, uma instituição religiosa conservadora e pró-capitalista. A permanência no Brasil era justificada pelo fato dela lutar contra o comunismo, contrapondo-se, assim, à influência das organizações de contestação da ditadura. Conhecida por realizar enormes casamentos coletivos que reuniam milhares de casais, a Igreja da Unificação também ficou conhecida pelos escândalos financeiros, como desvio das doações dos fiéis. Na década de 80, o Reverendo Moon foi preso e cumpriu pena nos EUA por problemas com o fisco norte- americano. Mas a igreja seguiu em frente e teve envolvimento com a política brasileira, quando financiou 60 candidatos à Constituinte de 1986, todos de legendas conservadoras, bem como os candidatos a prefeito de São Paulo, Jânio Quadros e Paulo Maluf.
Na atualidade, o filho mais novo do falecido Reverendo Moon, Sean Moon e um grupo dissidente mais radical do movimento, fundaram a Igreja do Santuário, que em 2018 ganhou os noticiários por realizar a tradicional benção de casais portando armas, pois o principal embasamento dessa igreja é o uso de armas de fogo.
Isso também incentivou que algumas igrejas evangélicas nos EUA, pedissem que os fiéis levassem as suas armas para serem abençoados. Há relatos que aqui no Brasil também houve situações similares, com pastores abençoando armamentos, sobretudo porque no governo anterior houve uma facilitação e um estímulo para a compra de armamentos pesados, como fuzis.
Em 2019, o grupo evangélico ultraconservador Capitol Ministries se aproximou de integrantes do governo Bolsonaro e mais recentemente, de deputados da Assembleia Legislativa de São Paulo, numa demonstração da infiltração de espaços públicos.
Na eleição norte-americana de 2024, há provas de que os evangélicos pentecostais brancos foram determinantes na vitória de Donald Trump.
Aqui em nosso país, as investigações da Polícia Federal comprovaram que alguns dos golpistas presos durante as invasões e depredações em 08 de janeiro de 2023, informaram terem sido recrutados e/ou financiados pelas Igrejas Batista, Presbiteriana Renovada e Assembléia de Deus.
Há dezenas de pequenas igrejas evangélicas, que se autodenominam neopentecostais, espalhadas pelos bairros das periferias das grandes cidades no país, que propagam uma visão restrita e distorcida da leitura bíblica, geram preconceitos, sobretudo de gênero e pregam a “teologia da prosperidade”, que abandona os princípios cristãos, pregando que a riqueza material e o sucesso financeiro são bençãos divinas, que podem serem alcançadas pela fé, por confissões positivas e por doações à igreja. Essas igrejas arrebatam milhões de fiéis que estão influenciando decisivamente as eleições municipais e gerais, sem que os marqueteiros dos candidatos percebam.
Por princípio, me considero uma pessoa ecumênica. Embora não professe nenhuma religião, desenvolvi um senso próprio de espiritualidade e assim procuro entender e respeitar todas. Respeito tanto Cristo, como Buda, Maomé e Oxalá. Todos representam seres espirituais elevados que vieram em auxílio do desenvolvimento integral da humanidade na forma de “avatares”, geraram mitologias próprias, que guardam semelhanças e especificidades, e por isso se sustentam através dos séculos.
Fico muito indignado quando à fé das pessoas, se imiscui interesses políticos, ideológicos e financeiros, que geram algo como essa “teologia da prosperidade”.
Em um mundo violento e com imensos abismos sociais, que geram milhões de desalentados com medo, essas correntes oportunistas de pensamento religioso arrebatam milhões e enriquecem uma minoria.
Para encerrar esse tema sério com um pouco de arte e humor, Frank Zappa foi um dos gênios da música do século XX. Compositor, arranjador e instrumentista sua obra transitou por todos os gêneros, passando pelo erudito, pelo blues, pelo jazz, pelo rock, pelo reggae e por canções em que exercia a sua visão crítica por
meio de um humor satírico.
Entre os seus alvos preferidos estavam os pastores tele-evangelistas, em especial Jimmy Swaggart, o mais famoso pastor evangelista pentecostal em rede nacional na televisão dos EUA nos anos 80 (ele seria desmoralizado publicamente, ao ser flagrado na suíte luxuosa de um hotel acompanhado de muitas prostitutas). Os dois se tornaram desafetos públicos e enquanto o pastor pedia aos seus telefiéis que destruíssem os discos, Zappa respondia em seus shows com canções como essa “Heavenly Bank Account”, que se encaixa com perfeição no encerramento dessa coluna. Afinal todos esses “donos” de igrejas, na verdade, apenas se preocupam com as suas “Contas Bancárias Celestiais”.
João Luís Martínez é ator, dramaturgo, escritor e roteirista. Cursou a Faculdade de Jornalismo da UFRGS. Atua há 40 anos nas áreas do Teatro e do Audiovisual (cinema, TV e web). Como roteirista já escreveu roteiros de curtas, longas, minisséries e séries, ficcionais e documentais para Produtoras do RS e de SP. Integrou durante dez anos o corpo docente do Studio Clio – Instituto de Artes e Humanismo onde foi responsável pelos cursos de roteiro. É amante da literatura, dos quadrinhos, da música e de todas as formas de expressão artística.
"Quanto mais arte, menos violência. Quanto mais arte, mais consciência, menos ignorância."
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