
Sundo
Eu escutei samba no ”sundo” de minha casa, na divisa do meu terreno, ouvindo as melodias que vinham da sala da falecida dona Osmarina, (uma preta velha que eu adorava e um dia mudou-se e nunca mais ficamos sabendo dela). Eu costumava brincar ali, nos fundos de minha casa. Como certa vez eu já falei, eu era “bitata”, trocava as palavras, então chamava os fundos de “sundo” e pedia para a minha mãe:
- Posso brincar no sundo, mãe?
Assim eu escutava os sambas-enredo dos carnavais, os sambas-canção, sambas em geral. Tinha um que eu gostava muito e tentava cantar ou dublar tipo o Pablo (dublador do Qual é a música? - programa apresentado pelo Silvio Santos), era “Todo o menino é um rei” do Roberto Ribeiro, canção cujo início era: “Todo menino é um rei, eu também já fui rei..”
Ali naquele sundo eu era um rei. Meu mundo de faz de conta embaixo do arvoredo era diverso: um dia eu era Tarzan; em outro, Durango Kid, o Homem-Aranha, o Hulk, o Conan, o Zorro, Steve Austin (O homem de seis milhões de dólares), e por aí vai. Era como uma sessão da tarde, cada dia tinha a aventura de um personagem. Eu brincava sozinho, conversava comigo mesmo, socando o ar, correndo, pulando e tentando subir no pé de bergamota. Quando recebia algum amiguinho, ou os meus primos, brincava com eles, mas após eles irem embora, eu tinha que fazer o "episódio do dia".
Lá, minha irmã e eu brincávamos de tentar cantar músicas para nós mesmos, nos aplaudíamos, e quando minha mãe varria o pátio com vassoura de guanxuma, era uma diversão só, indo atrás dos rastros que ela deixava por onde passava. Eu adorava ver o pôr do sol e suas cores passarem pelas folhas das árvores, mostrando que era o fim do dia.
O tempo passou, virei adolescente, jovem, parei de frequentar o "sundo" de casa. Um dia eu fui embora, casei, tive filhos, descasei, casei de novo, descobri que era adotado e, um dia, ao voltar à casa em que eu cresci, fiquei triste ao saber que o "sundo" já não existia mais, eles haviam construído um “salão de festas” como anexo da casa. Um salão de festas em que um dia festejaram os 70 anos de minha mãe sem ao menos me convidar…
Hoje quase não vou mais à Alvorada, minha antiga casa continua lá, mas nem o "sundo" e nem minha mãe já habitam no local. Meus cabelos e barbas estão ficando brancos, mas tenho comigo uma missão: de não deixar morrer aquele menino que brincava durante aquelas tardes mágicas, e se fecho os olhos eu vejo ele correndo, falando sozinho, anunciando um novo episódio de O espetacular Homem Aranha, e escutando Roberto Ribeiro pelo toca discos de dona Osmarina.
“Todo menino é um rei
eu também já fui rei
Mas qual
despertei…
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Arte: Miriam Coelho |
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