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A VIAGEM
É interessante como nós, os homens, nas nossas conversas, construímos laços afetivos através de dois assuntos: carros e mulheres. É o caso do meu relacionamento com meu pai: um homem que, boa parte da minha infância e adolescência, foi quase um estranho. Não tinha tempo para se envolver comigo e meu irmão nas nossas brincadeiras de crianças. Entrava em casa para fazer três refeições e dormir. Ai de nós se o acordávamos da sesta após o almoço: a cinta "varava o lombo". Não sei se éramos "arteiros", como dizia minha mãe, porque não recebíamos atenção ou não recebíamos atenção porque éramos "arteiros". Mas sei que uma coisa me fez conversar e entender melhor o meu pai: o carro.
Durante a minha infância e adolescência o pai teve dois carros: um fusca 1200, azul, de 1962, e outro1300, branco, de1968. Engraçado lembrar que, na época de cada carro, o nível de envolvimento com meu pai foi determinado pela minha maturidade, isto é, pelo meu grau de compreensão das coisas que estavam a minha volta, meus interesses ou, como dizem os filósofos, minha "visão de mundo". Por isto as melhores ou piores lembranças sobre cada carro estão associadas a períodos distintos da minha vida: esta misteriosa e fascinante “viagem”.
Com o primeiro carro eu era uma criança de menos de dez anos. Os passeios com a família para tomar sorvete e a pescaria na praia de Quintão, quando passamos a noite na beira do mar e na manhã seguinte tivemos que desenterrar as rodas do carro, são as imagens que me veem à memória junto com as conversas e risadas de meu pai, que, para nós crianças, acostumadas a ter medo até da sua fotografia, quando a encontrávamos durante alguma “arte", se transformava em outro homem.
No período do fusca branco já estava com meus dezesseis anos e, nunca esqueço, quando o pai me surpreendeu ao dizer: "pega a chave, Iiga o carro que eu vou te ensinar a dirigir". Senti-me nas nuvens, já não era uma criança, mas um homem e, brevemente, mais do que um homem, um motorista! Mas (sempre tem um “mas”), na primeira curva para a esquerda, cai das nuvens...a porta do lado do meu pai se abriu, ele ficou pendurado: uma mão segurando no "puta merda" e a outra no trinque da porta. Fiquei assustado, freei e, dali para frente, minha primeira aula foi um desastre, fiquei todo atrapalhado. Logo depois o fusca branco foi vendido e só vim a aprender a dirigir aos trinta e um anos.
Hoje, nos passeios e viagens com a minha família, lembro com saudades do meu pai e penso que o automóvel, mais do que um meio de transporte é um espaço de convivência, onde também são tramados os fios das relações afetivas.

| NESTOR OURIQUE MEDEIROS |


2 Comentários
Oi, sou a Isab. Boas lembranças de infância. Bom, mesmo, é a gente poder contar e escrever sobre elas. Repartir com outras pessoas. Também tenho lembranças com 2 fuças e meu pai. O vermelho era o Harbie e o verde era o Periquito. Bjuuu
ResponderExcluirMeu único lembrança de carro com meu pai são ônibus ou táxi em emergência.(kkk).
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