DEAMBULÂNCIAS

 Albi em Nominata

Meu tio Albi nasceu e seu nome ainda não existia: foi inventado na junção amorosa de Albuquerque e Bia, meus avós paternos. Entre nós tem força esse costume de refundar a língua portuguesa pelos direitos de criação de nomes próprios, tornados únicos. Nascimento e nome como opostos complementares à morte e ao silêncio que virá. Talvez por isso haja tantas invenções de graças sonoras, no limite do impronunciável: Francisvladsons, Rossicleides, Sigineutons e por aí vai. Fico pensando no impacto psicológico de tais escolhas. Será que nomes estrambóticos atrapalham a escolha em entrevistas de empregos? Afinal, não conheço nenhum Sigineuton executivo de grande empresa, nem lembro de qualquer Higenildo locutor de telejornal.

Muito depois eu soube de uma cidade francesa chamada Albi, mas aí o tio já havia se consolidado como único, em combo de experiências afetivas, juntamente com o nome. Simples e original, destacava-se no domínio regional de Raimundos, Franciscos e Josés. O tio mesmo era uma pessoa transparente em amorosidade, fácil de gostar, um homem bom. Quando penso nele sempre recordo o texto de Charles Dickens sobre o personagem Mr Pickwick, descrito como anjo de polainas. Alguém deslocado das maldades do mundo, despertando nos outros a vontade de proteção.

Investido como meu padrinho de batismo, tio Albi formava par com a avó Zuila, de minha família materna. Outro nome, como diz o clichê, inusitado, letra última da lista de chamada da classe. Esses padrinhos eram puro constraste entre si, quase a antimatéria um do outro. A fotografia em preto e branco dos dois, encortinada de papel manteiga no álbum de papelão, guarda essa improbabilidade caricata ele na figura de magro tranquilo e plácido, ela a gordinha empreendedora e inquieta, capturada pelas artes do fotógrafo paciente.

O tio morava em casa com jardim suficiente para que ali eu plantasse minha primeira árvore, aprendendo com ele como se tornava real uma utopia verde. Não existiam as atrações coloridas do papagaio e do gato, nem a cozinha aromática de temperos e de mobiliário antigo da casa ao lado, onde habitava minha tia-avó Neném, verdadeiro paradoxo aos meus ouvidos infantis: como era possível alguém com um nome assim, sendo gente velha? Motivo a mais para fazer constantes expedições até lá, pulando o muro para conferir essa personagem capaz de juntar as pontas da vida.

Para equilibrar a concorrência doméstica meu tio me levava para passear, gastar energia e ver o mundo ao redor. Era a demonstração viva da palavra “pedagogo”, aquele que toma pela mão o discípulo, na estrada do aprendizado. O mesmo sentido condutivo quando ele lia para mim e meu irmão as primeiras revistas em quadrinhos, pontuando as interjeições saídas dos balões de fala dos personagens com tons de “eis”, “hums”, “epas, palavras que pareciam saltantes e ágeis, mostrando seu valor de catalisadores na narrativa, mestras da síntese.

 Começava assim um tempo de sensualidade gráfica, cada vez mais apurada com os diversos tipos de impressão, os cheiros do papel, as lombadas e as orelhas dos livros, o maravilhamento com as possibilidades da língua, que dura até hoje e se renova, nas viagens literárias pelos modos de falar e de escrever. Aprendi que os nomes, as coisas e nós mesmos existimos todos juntos: por isso é preciso alinhar os sons das palavras, colocá-las no papel-tela, educar a imaginação na floresta de possibilidades. Nunca mais saí desse gosto de descoberta, onde os limites da escrita impõem respeito e têm ecologia própria. É como se meu tio, o papagaio, a casa vizinha, o projeto de árvore e tudo no mundo que existiu desde então formassem uma caravana de nomes, caminhando juntos para lugar improvável, atravessando o tempo em estado de fabulação.


Paulo Malburk

Paulo Albuquerque, nome literário Paulo Malburk. Já foi filatélico e normativista, hoje é nefelibata e caçador do poético. Crônicas, mini-contos, contos e quase alguma coisa mais. Selecionado em coletâneas nacionais.


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