ESSE ESTRANHO NOVO MUNDO

 

O REINO DAS PESSOAS ENCANTADAS

UM CONTO DE FADAS

ERA UMA VEZ ... um reino de pessoas encantadas. Nenhuma delas tinha algum dom especial ou poder sobrenatural. As pessoas eram encantadas pelo Soberano do Reino.

Antes de seguirmos com a história me permitam colocar uma pitada de realismo social nesse conto de fadas, afim de manter a verossimilhança ficcional. Essas pessoas encantadas na verdade eram uma minoria. O que se convencionou chamar no mundo real, uma elite.

Continuando... o reino era governado por um Reizinho que não tomava nenhuma decisão, sem antes consultar essas pessoas (antes que os leitores cogitem um problema de estatura física do Soberano, alerto que o diminutivo é prerrogativa do autor).

O Reizinho se esmerava em agradá-los e por isso mandara construir belas moradias e espaços de lazer às margens do Lago Alegre. Sabemos que mesmo em contos de fadas, uma massa de água não pode ter emoções e por isso toda a alegria, ficava por conta daquele tipo de pessoas acima mencionadas.

No entanto o Reino não era apenas isso. Mais de dois terços do seu território era ocupado por uma enorme planície, onde vivia a maioria da população que não tinha nenhum motivo para ser encantada. Aliás, “os encantados” costumavam chamar esses moradores da planície de “alagadiços”, entre goles de espumante e risadas. Havia uma razão histórica para essa alcunha irônica, pois de tempos em tempos a grande planície era inundada.

Nesse momento cumpre explicar o sistema hídrico em que o Lago Alegre estava inserido, pois ele era conectado a um canal curto, que por sua vez recebia água de cinco rios montanhosos. Assim quando havia uma precipitação pluviométrica forte nas cabeceiras dos rios, essas águas desaguavam no Lago Alegre, cujo nível da cota de inundação era ultrapassado e “os alagadiços” perdiam tudo de novo.

O leitor atento deve estar se perguntando, mas porque apenas a planície era inundada pelas águas? Acaso a côrte das pessoas encantadas e o seu Reizinho moravam num terreno elevado? Não. Nem colina, nem morro e que dirá montanha. É que a área em que eles habitavam, tinha um sistema de proteção de cheias formado por dutos subterrâneos pelos quais o excedente hídrico escorria e era lançado num amplo reservatório atrás do castelo, razão pela qual as pessoas  encantadas, sequer pagavam pela água que consumiam em suas residências no entorno do Castelo

Um certo dia, o Reizinho estava recebendo uma comitiva que explicava o planejamento para os quatro dias de atividades de lazer e esportivas que começariam no dia seguinte nas praças e quadras da belíssima orla do Lago Alegre.

Todos estavam muito encantados, quando se aproximou por trás do trono o Novo Mago (assim chamado porque o anterior havia sido preso, por excesso de previsões funestas. Este ainda tinha a vantagem de saber a previsão do tempo). Num olhar de revesgueio (termo típico do reino que ficava bem ao sul do continente) o Soberano percebeu a chegada e logo tratou de sorrir, apertar as mãos, proclamar o sucesso, dar parabéns e dispensar a comitiva.

Ao ver a expressão grave do Novo Mago, o Reizinho desmanchou o sorriso e fez menção ao destino do antigo, como se assim pudesse evitar outras previsões que não o agradavam. E foi justamente o que o Novo Mago fez, afirmando que os seus corvos haviam retornado e avisado de um acúmulo de nuvens escuras para além da montanha. Que certamente haveria muita chuva e que os rios montanhosos iriam desaguar tudo isso no Lago Alegre, justamente no momento da realização das festividades na orla. O Reizinho deu um sorriso de meia-boca, colocou uma das mãos sobre o ombro do “funcionário” e afirmou que não havia motivos para preocupação, pois o sistema de dutos os protegeria e o problema era dos “alagadiços”, que já estavam acostumados. O Reizinho riu e como a sua risada se prolongou um pouco além do normal, o Novo Mago sentiu-se compelido a rir. Mesmo assim ao se retirar, ouviu do Soberano que precisava melhorar as suas previsões, se não quisesse fazer companhia ao ex-colega.

Naquela noite as nuvem escuras despejaram muitos litros de água nas cabeceiras dos rios.

O dia despertou com tempo bom, sol, poucas nuvens e uma temperatura  agradável e todos que se dirigiam à orla estavam encantados, mesmo aqueles que estenderam os olhares para a montanha ao longe, cujo cume estava escondido por nuvens escuras e rapidamente trataram de esquecer a visão e se concentrar na organização do evento. Para o bem da verdade narrativa, a concentração dos encantados era para averiguar o trabalho dos alagadiços, que montavam barracas com cadeiras, posicionavam os “foodwagons” (um modismo que poderia ser traduzido por “carroças de comida” e que soava bem melhor na língua estrangeira) e aplainavam o piso para as partidas de críquete, antes de serem despachados de novo para a planície.

Tudo estava pronto quando o Reizinho chegou sob aplausos retribuídos por sorrisos e foi provar provar os quitutes das “foodwagons”, enquanto os jogos começavam.

A côrte e o Soberano estavam tão entretidos com os seu afazeres prazerosos, que sequer perceberam que as águas do Lago Alegre estavam subindo. Foi só quando os pés dos jogadores de críquete ficaram molhados, que todos se deram conta do avanço das águas. Os olhares outrora de admiração dirigidos ao Reizinho, agora eram de estupefação e quatro rapazes fortes ergueram a liteira do Soberano e trataram de retirá-lo num passo acelerado.

Logo toda a côrte começou a correr, não sem antes que alguns homens e mulheres escorregassem no piso molhado e tombassem espetacularmente no solo encharcado. A água do lago subiu célere, inundando toda a orla. O pessoal das “foodwagons” largou tudo e correu. Houve até quem pensasse, se não seria o caso de num futuro próximo pensar em “foodboats”.

Todas as residências em torno do castelo foram inundadas pelas águas lacustres. Mas como a residência do Reizinho era mais acima e muito ampla, pode abrigar todo o seu séquito, não mais tão encantado e definitivamente molhado.

As discussões seguiram por dias em meio a banquetes (pois as imensas despensas do castelo estavam lotadas de provisões) e geraram uma controvérsia entre os que acreditavam num sortilégio enviado por algum bruxo alagadiço e aqueles que achavam que era uma advertência dos deuses. Mas o fato é que todos, incluindo o Reizinho, sequer lembravam da existência dos moradores da planície, mais uma vez alagada.

Já entre as pessoas da planície, havia muitos que comentavam frases do tipo: “pelo menos agora, eles também...”. Esses já tinham construído plataformas para erguerem os móveis e diminuírem os prejuízos. Mas a maioria levava uma vida tão precária, que pouco havia o que perder, embora o cobrador de impostos reais não esquecesse deles. Bastava as águas recuarem e mesmo com o solo úmido da planície, ele avançava à cavalo por entre as habitações simples, apenas ordenando aos seus subalternos a nefasta cobrança.

O Novo Mago foi o responsável pela investigação da inundação na orla e ao cabo de alguns dias, teve um reunião à portas fechadas com o Reizinho. Ele explicou que os dutos estavam cheios de detritos. Diante da perplexidade real, foi explanando que a fossa utilizada para o lixo produzido pelo Soberano, havia esgotado a sua capacidade, uma de suas paredes cedera, quebrando um dos dutos, espalhando os dejetos reais. O Reizinho disse que não tinha como saber isso e que se o Novo Mago vazasse essa informação, iria ser um hóspede permanente das masmorras castelares.

A água levou muito tempo para recuar e deixou um rastro de destruição nas ruas e residências em torno do Castelo. No entanto, o Reizinho garantiu às pessoas encantadas que ainda ficariam abrigadas confortavelmente no castelo, “recursos infinitos” para recuperar tudo. Quanto à recuperação dos habitantes da planície, o Reizinho dava de ombros e proclamava: “eles já estão acostumados”.

Mas algo mudara em seu séquito, que passou um tempo sendo desconfiado e ressabiado, antes de voltar a ser encantado.

Em segredo, o Reizinho mandou construir um nova fossa bem maior, pois nesses tempos difíceis, o seu apetite aumentava.


MORAL DA HISTÓRIA:

Quem se encanta com um sapo, esperando por um príncipe, esquece que o batráquio gosta de alagamentos.

João Luís Martinez


João Luís Martínez é ator, dramaturgo, escritor e roteirista. Cursou a Faculdade de Jornalismo da UFRGS. Atua há 40 anos nas áreas do Teatro e do Audiovisual (cinema, TV e web). Como roteirista já escreveu roteiros de curtas, longas, minisséries e séries, ficcionais e documentais para Produtoras do RS e de SP. Integrou durante dez anos o corpo docente do Studio Clio – Instituto de Artes e Humanismo onde foi responsável pelos cursos de roteiro. É amante da literatura, dos quadrinhos, da música e de todas as formas de expressão artística.


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