ISSO DÁ UMA CRÔNICA

 

Caçando crônicas, atirando cerveja 

Mais uma vez, o prazo pra próxima crônica se aproximando e eu aqui, no bar pé-sujo do bairro, esperando milagres. À mesa, minha esposa e enteada; no meio, entre nós, um quilo de camarão banhado no óleo, três copos de cerveja. Aos nossos pés, uma gatinha cinza fazendo as graças. Vez ou outra, ganha uma cabecinha melada e cheia de antenas, que ela devora sem cerimônia. Uma cadeira ficou vazia. Peço outro copo americano para a garçonete. Esse é pra Dona Inspiração ou qualquer bom espírito que quiser se juntar à gente. 

— Mãe, qual é seu sentimento ao me ver bebendo? 

Morena e suas perguntas filosóficas.  

Normal, ué. tem 19 anos... 

Pego mais uma cabecinha alaranjada pelas antenas e deixo-a cair pra baixo da mesa. 

— Acho que prenha, a póbi. 

E aí acontece. 

— É ela, é ela — sussurra Larissa de repente. — A vizinha da frente! 

Acabavam de sentar bem perto da gente. Ela, o namorado e outro casal. Pediram a mesma cerveja que a gente.  

— Jéssica — chamo a garçonete. — Traz mais uma, pufavô, e manda outra praquela mesa bem ali,  

Faço um bico em direção aos vizinhos, que já estão secando os copos.  

Sempre quis fazer isso. Mandar uma cerveja, uma dose, um bilhete dobrado... Acho tão lindo nos filmes antigos. Mas hoje e aqui, 2023 no Papicu, estou romantizando sozinha. 

— O que você está fazendo? — Larissa em voz baixa, os olhos abertos num susto. Morena sem entender nada. 

Eu desfazendo uma desfeita de sete anos. 

Morena ainda sem entender nada. Na época, ela tinha doze anos e não se lembra de como a mãe, num ataque de timidez, simplesmente ignorou a moça que acenava empolgadamente da varanda da frente para dar as boas-vindas à vizinha recém-chegada de mudança. 

A cerveja chega na outra mesa. Com o canto do olho vejo a garçonete sinalizando na nossa direção. Agora a bola está com eles. Nem sei o que espero. Que mandem outra pra ? Que cheguem junto pra saber o que fizeram pra merecer esse obséquio meio antiquado numa quinta-feira qualquer? Um joinha por cima das cabeças que nos separam? É, no mínimo isso. No mínimo algo. No mínimo qualquer sinal de que aceitam o pedido de desculpas. Mas não vem nada. Bebem a cerveja, pedem outra, juntam o casco ao anterior embaixo da mesa. 

— Você não sabe que o povo do Papicu num quer papo? — Larissa está chateada. Não comigo, mas com eles. Não adiantou nada, e ainda perdeu uma cerveja! 

— Perdi nada — respondo calmamente e quase solto um suspiro de alívio 

Tomo o último gole do meu copo, entrego um camarão inteiro para a gatinha cinza, e sorrio festiva: — Ganhei uma crônica. 


Yvonne Miller
Foto: 
Thaís Vieira


Yvonne Miller é natural de Berlim, mas prefere o calor do Norte e Nordeste brasileiro, onde mora desde 2017. Alemã de nascença, brasileira de alma, apaixonada pela crônica, linguista, admiradora de cactos, geminiana e muitas coisas mais. Tem crônicas e contos publicados em várias antologias e escreve quinzenalmente para a “Rubem – Revista da Crônica”. É uma das organizadoras da coletânea “Quando a Maré Encher” (Mirada, 2021) e autora de “Deus Criou Primeiro um Tatu: Crônicas da Mata” (Aboio, 2022), que reúne 50 crônicas – ora humorísticas, ora reflexivas, poéticas ou políticas – sobre sua convivência com a flora e fauna na Mata Atlântica pernambucana. Atualmente mora na ilha de Algodoal, no Pará, junto com sua esposa, gato e cachorro. Contato: @yvonnemiller_escritora

"Quanto mais arte, menos violência. Quanto mais arte, mais consciência, menos ignorância."
- Ricardo Mendes

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2 Comentários

  1. Escrever é um desafio que exige observação.

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    1. Com certeza, principalmente quando se trata da crônica :-)

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