Simiologia
Quando chega o meio do ano sempre tem festival de cores rosa-ocre-azul no céu de fim de tarde. Mas o que mais espero de maravilha são os bandos de soíns, que vêm e vão pelos fios dos postes de meu bairro. Aparecem filhotes ansiosos, dando pulinhos por cima dos pais; outros, com jeito de agregados recentes da turma, mantêm distância, aguardando o chamado para retomar andança. Vez em quando um silvo mais agudo denuncia quem ficou para trás, apartado dos companheiros. Desconfiados todos, eles mal têm tempo de parar e aceitar uma oferta de banana, posta a cuidadosa distância.
Não cesso de admirar a estética peluda desses primos símios. Parece uma combinação de jeito sóbrio de um cavalheiro do século XIX (é você, Shopenhauer?) com a destreza de um jogral da idade média. Penso que eles têm uma espécie de decoro lúdico, de quem sabe que brincar é coisa séria, e assim seguem esnobando destreza e aplainando dificuldades. É habilidade verdadeiramente humilhante para desajeitados humanos como eu, capaz de trombar com o que lhe aparece pela frente e de sofrer avarias improváveis.
Incrível essa nonchalance frente ao perigo, passeando por entre fios e cabos tal qual fossem cipós de borracha (acho que só os operários das redes clandestinas de gatonet tem poder igual). Certo que não fazem esse percurso porque querem, mas porque estão obrigados pela destruição ambiental das cidades, a lhes vedar espaços antes livres: a lei da adaptação impõe-se aí pela rota da invasão humana. Mesmo assim os soíns seguem, ousando a liberdade sem a qual não podem viver, pendurando-se como se não houvesse a possibilidade azarenta de tomar o fio errado e serem eletrocutados, passando desta vida para outra, sem tantos pulos de precisão.
Enquanto isso nossa estranha espécie humana segue tentando equilibrar- se entre o poder e a (auto)destruição, ignorando a lição de soíns, pacas, tatus e florestas. Como se não fosse necessário mover-se para chegar a algum bom lugar ou na ilusão cômoda de que na última hora, do puro nada, surjam fios invisíveis sobre abismos que ajudamos a criar.
Paulo Malburk |
1 Comentários
Poesia prosaica... se é que isto existe.
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