NAVALHAS AO VENTO

 

LEMBRANÇAS DE UBER

A história que contarei não é atual, já tem alguns anos, mas todo final de outubro eu lembro dando boas risadas.

Era dia 31 de outubro, saí de casa para ir uma festa ofertada ao povo de rua, Exús e Pombogiras. Sou de Umbanda e uso vestimentas típicas quando vou ao terreiro. Neste dia eu vestia várias saias sobrepostas nas cores preto e roxo, com saia de armação e chapéu. Passei pela casa de uma amiga para irmos juntas. Minha irmã de santo vestia uma roupa parecida com a minha, só que totalmente na cor preta.

Logo que entrei no carro, dei boa noite e senti uma certa tensão, o motorista me olhou de cima abaixo. Quando paramos na porta da casa da outra passageira senti que a tensão aumentou, mas não dei bola. O motorista parecia que não respirava, olhava pelo retrovisor a todo momento. Certo momento ele não aguentou e perguntou:

- Vocês estão indo a uma festa de Halloween? Até poderia. As vestimentas lembram muito as roupas de bruxas, por isso não levei a mal. Calmamente e sem nenhum medo ou timidez, respondi.

- Não, querido, estamos indo numa gira de Exú.

Estávamos embaixo do viaduto da RS 118, aquele que leva à Ulbra e ele parou bruscamente o carro. Ainda bem que eu estava de cinto, a outra passageira bateu com o rosto no banco da frente porque estava sem, culpa dela. O motorista virou para trás e vi pânico no seu olhar, foi aí que percebi a bíblia no console. Ele gritava, enlouquecido, cheio de medo e ódio.

- Desçam as duas, eu não carrego diabo no meu carro.

Eram mais de 23h30 e a outra passageira se apavorou. Ali, naquele horário é deserto. Começou a chorar e eu a acalmei.

- Calma. Não estamos sozinhas, estamos bem acompanhadas.

O motorista tremia da cabeça aos pés. Eu provoquei:

- Tu não queres concorrência? Vamos descer, sim. Calma.

Desci do carro, mas antes de sair totalmente, voltei a cabeça e quis tirar uma onda com o pânico dele, claro que errei, mas sou humana kkk.

- Que Exú Tranca Rua te acompanhe, meu filho.

Quem é de religião sabe que não desejei nada de ruim, muito pelo contrário, desejei um bem a ele, mesmo que em tom de ironia. Esse homem se transformou, a cara de ódio ficou muito mais visível e ele arrancou o carro comigo ainda dentro, apenas um pé no chão. Cai no asfalto e ele arrancou com a porta aberta em alta velocidade. Não me machuquei. Eram muitas saias para me proteger, além disso, como eu disse antes, estava bem acompanhada.

Dei muita risada na hora, mas depois fiquei triste pela certeza de que a intolerância a nossa religião só aumenta, principalmente no meio evangélico. Confundem Exú com diabo e nem se importam em pesquisar. Exú nunca foi diabo, aliás, na nossa religião o diabo é apenas uma criação dos cristãos para causar medo, não cremos nele. É apenas uma forma de culpar outro ser pelas tuas escolhas mal feitas, tirando, assim, a responsabilidade do “alecrim dourado”. Tipo: foi o diabo que fez meu marido ter uma amante. Foi o diabo que fez meu filho assaltar. Foi o diabo que fez eu dar para o vizinho gostoso. Como se a pessoa não tivesse livre arbítrio e um ser maldoso fosse o culpado.

Claro que reportei o caso a Uber e soube que o motorista foi desligado da plataforma. Hoje ele deve dizer que foi o diabo que fez ele ser desligado da sua fonte de renda, afinal tinham dois no carro dele. Não dirá que sua foi sua própria atitude que gerou a consequência.

E assim segue nossa vida. Com pessoas julgando a religião das outras, magoando, machucando, mas não querendo conhecer. Não tendo o trabalho de abrir um site de pesquisas, um livro... Crendo piamente na palavra de uma pessoa que diz o que quer, a seu bel prazer, causando medo, inclusive, para tirar dinheiro dos ignorantes. Ressalto que a palavra “ignorante” não está sendo usada em tom pejorativo e sim como “aquele que ignora” , que desconhece a verdade.

Agora todo ano eu lembro desse dia e peço a Exú Tranca Rua que acompanhe seus pensamentos e seus passos. Que o guie para enxergar a verdade e parar de nos julgar. Afinal eu sempre aprendi que julgar os outros é errado. Será que para outras religiões não é pecado? Na minha é.


Isab-El Cristina



Isab-El Cristina Soares é poeta, membro do Clube Literário de Gravataí, autora de 6 livros.  Graduada em Letras/ Literaturas, pós-graduada em Libras, é Diretora Cultural do ColetiveArts.

Escute o episódio do podcast Coletive Som gravado com Isab-El , clicando Aqui.

"Quanto mais arte, menos violência. Quanto mais arte, mais consciência, menos ignorância."
- Ricardo Mendes

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5 Comentários

  1. A intolerância religiosa é muito triste, pois junto vem o racismo, a violência. 🥲

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  2. A intolerância religiosa é muito triste, pois junto vem o racismo, a violência. 🥲

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    1. Oi, Marli, sou a Isab. Com certeza, a intolerância pelas religiões de matriz africana tenta ocultar o racismo implícito. Bjuuuu

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