Parte 7
No meio da noite, a garota acordou com a porta do seu quarto se fechando, alguém estava em seu quarto e acabara de sair. Percebeu que dormira o dia inteiro e estava mais fraca que o normal. Tentou se mexer, mas sentia suas pernas muito moles e uma forte tontura. Escutou vozes do outro lado da porta.
- Tem certeza que ela está dormindo? - indagou sua mãe.
- Sim, acabo sair do quarto… - disse seu irmão.
- Melhor… precisamos mantê-la assim por um tempo.
- Estou cuidando disso. Mas até quando iremos prendê-la aqui?
- Vamos continuar agindo como sempre agimos - disse a mãe - ela acreditou em nós todos esses anos, ainda é jovem e podemos controlá-la. No futuro pensaremos em outra forma.
- Acho que ela está começando a sair do nosso controle. Tentei influenciá-la nesses anos todos, mas ela sempre teve personalidade forte. Teremos de mudar nossas posturas agora.
- Vamos ver como serão os próximos dias.
Manuela questionou a si mesma se ouvira o que ouvira. Durante anos, seu irmão sempre se manteve afastado de qualquer assunto relacionado a ela, sempre tinha de se proteger da mãe, mas nunca dele. Do seu quarto, ela pôde perceber que algo estava muito estranho. Lembrou-se de toda a sua história desde o início.
Quando ainda era criança, moravam na parte central da cidade, seu irmão era calado e obediente a tudo que os pais diziam - diferente dela, que questionava ou teimava. Com o tempo, entendeu ele que não tinha vontade, sonhos ou desejos. Enquanto ela sempre dava um jeito de sair de casa, se relacionar com as outras crianças do bairro ou da escola, ele ficava em casa e não tinha amigos. Sua mãe a impedia e passou a prendê-la, controlar com quem falava e aonde ia. O pai também estava sempre distante, nunca a repreendia, porém nunca a apoiava. Quando ainda tinha onze anos, sua família se mudou para a casa rodeada de floresta. Para irem à escola, seus pais os levavam de carro e os buscavam. Nunca se questionou o suficiente sobre os motivos para tanto zelo. Seus pais também não faziam nada de especial além de trabalhar em casa, sobrevivendo com um dinheiro que vinha da aposentadoria do pai por invalidez num acidente de trabalho numa máquina de empresa. Nunca soube qual empresa era, nem o que ele fazia exatamente, conhecia apenas as cicatrizes em seu corpo.
Talvez o maior erro de Manuela era que nunca perguntou com verdadeira curiosidade, todos os detalhes da vida de seus pais, os motivos para tanto controle e o que seu irmão pensava disso. Ela simplesmente os julgou com sua ingenuidade, aceitando as primeiras respostas e aparências que lhe ofereceram.
Por que o maior objetivo da vida deles era se esconder? O que escondiam dos outros e dela também? Por que ela nunca fizera parte desse segredo? Mais uma vez sentia-se à parte da família.
Suspirou profundamente, repreendendo a si mesma. Naquele momento, precisava encontrar um jeito de sair do quarto. Lembrou-se de Art. Naquela noite não poderia vê-lo. Um nó surgiu em sua garganta pensando em seu amigo, sozinho na floresta, tocando seu violino. O conhecia a pouco tempo, porém sentia sua falta, como se o conhecesse a tanto tempo.
Ergueu o corpo sentando-se na cama, colocou os pés descalços no chão, sentindo o piso de tábua firme. Tentou forçar as pernas para se levantar da cama, porém era impossível. Estava muito fraca, sentindo a tontura de algum remédio que lhe deram e com uma fraqueza em todo o seu organismo. Sabia apenas que ainda estava acordada e viva.
Deitou-se em sua cama novamente, fechou os olhos enquanto as lágrimas escorriam sem parar. Não havia tortura maior que estar naquela situação, onde descobrira que estava mais sozinha que nunca, vivendo num ambiente mais hostil e misterioso que podia imaginar. Talvez o mais seguro e conhecido em sua vida, naquele momento, era aquela estranha árvore mágica, com formas humanas, presa na floresta, tocando seu violino para as estrelas. Sentia-se realmente próxima a Art, como parte de seus galhos. Talvez tivesse sido alguém de sua família, em outra vida. Adormeceu novamente e teve outro sonho com Sophie e Miguel.
Em seu sonho ambos estavam em uma casa muito linda, gigante, cheia de antiguidades, conforto e uma lareira. Era noite.
- Então o senhor deseja desposar minha filha? - indagou um senhor, entrando na sala. Era o mesmo que a puxara pelo braço na feira em que se conheceram. A jovem sentou-se no sofá, enquanto o rapaz permanecia em pé, claramente nervoso com a chegada do homem em sua pose mais poderosa- Mas do que vive para sustentar uma família?
- Minha família é comerciante. Temos um mercado na vila vizinha. Trabalho com eles desde que comecei a falar. No futuro, serei o dono, pois só tenho uma irmã mais nova, que logo irá casar também. - respondeu Miguel.
- Seus pais aprovam sua decisão de formar uma família?
- Sim. Eles aprovaram minha decisão. Por isso vim aqui pedir a mão de Sophie.
O homem sentou-se ao lado da filha, olhou-a com ternura, pareciam comunicar-se por olhares. Ela aprovava o noivo com todo o seu coração, o que fez o pai amolecer.
- Pois bem, meu jovem - disse ele, voltando-se para Miguel - eu aprovo a união de vocês. - o homem se levantou, caminhou até o rapaz, olhando firme em seus olhos e concluindo - porém aviso que Sophie não é como todas as outras jovens que já conheceu, ela é diferente… Precisa ter cuidado.
Manuela acordou com o canto do galo. Já era manhã novamente.
Miriam Coelho |
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