A Melodia do tempo
Parte 9
Manuela sonhou novamente com Sophie.
Ela arrumava a mesa de jantar com um olhar triste. Era noite pela janela. Colocava os pratos e talheres lentamente, pensativa, enquanto olhava para a lua através das venezianas abertas. A comida cheirava bem, de cima do fogão a lenha.
Sophie sentou-se em uma das cadeiras, deitou a cabeça sobre os braços cruzados na mesa e ficou quieta, escutando o crepitar do fogo e o barulho do sereno da rua que invadia sua casa e sua alma.
Depois de muito tempo esperando, ela percebeu que já era hora de se levantar, apagar tudo e ir para a cama. Seu marido não iria chegar novamente. Tampou as penelas, apagou o fogo, fechou as janelas e se dirigiu para o quarto. Antes de deitar, puxou um caderno de capa de couro marrom e folhas porosas de baixo do seu travesseiro, dirigiu-se até a sua escrivaninha, molhou uma pena no tinteiro e escreveu:
"Dia 21. Miguel novamente não voltou para casa na hora do jantar. Ele prometeu que não ficaria até tarde na rua com seus amigos. Ele prometeu que seria um marido de verdade. Ele prometeu tantas coisas…"
A jovem parou de escrever, ouvindo um barulho da entrada. Era ele? Levantou-se com pressa, guardou o caderno em baixo do travesseiro novamente e até a entrada da casa. Miguel entrava cambaleando, esbarrando nos móveis, enquanto tentava tirar os sapatos no meio da sala.
- Onde estava? - perguntou Sophie, sua voz saiu rouca, fazia horas que não falava com ninguém, então estava desacostumada. - Não começa! - rosnou ele, claramente azul de álcool. Soltou um soluço e começou a procurar algum jarro de água que ficava sobre o balcão, ao lado da porta principal.
- Prometeu que voltaria para comermos juntos. Casamos, mas quase não estamos juntos.
- Eu não consigo nada!- gritou ele, pegando-a com força pelos braços - Nada na minha vida acontece! - parecia querer falar mais coisas, porém a soltou e virou para os lados, não tinha coragem. - Me deixe em paz!
Ele calçou de novo o único calçado que conseguiu tirar e saiu para a rua batendo a porta atrás de si, deixando Sophie sozinha novamente.
Manuela acordou chorando, conseguia sentir a dor de Sophie em seu coração. Permaneceu um tempo atordoada em sua cama e esqueceu a promessa que fizera a si mesma na noite anterior até que seu irmão entrou em seu quarto para deixar- lhe o café da manhã. O rapaz estranhou ela estar deitada no chão, mas não disse nada.
Há dias que ela não comia, então já nem sentia mais fome, seu corpo estava fraco, porém decidiu que aquele era o momento de agir.
- Me ajuda a ir até minha cama? - pediu ela.
- Por que dormiu no chão? - indagou ele, ajudando-a se levantar.
- Estava querendo mudar de lugar, passei muito tempo na cama… mas quando deitei no chão duro, me arrependi.
- Por que não voltou?
- Estava sem forças… Me alcança meu caderno e uma caneca que ficam na minha mesa?
O rapaz concordou e virou-se para pegar o que sua irmã pediu. Enquanto ele estava de costas, distraído com um texto sobre a própria família que ela deixou estrategicamente em cima da mesa na noite anterior, ela correu para abrir a porta do quarto sem barulho, mas não saiu, voltou num pulo e se escondeu em baixo da cama. Quando o garoto virou-se novamente, viu a porta do quarto aberta e a falta da irmã. Saiu apressado gritando para os seus pais.
- Manuela fugiu!
- Para onde? - disse seu pai - Não passou por mim!
- Onde está a mãe?
- No quarto!
- Vai lá avisar ela, que eu vou procurar na sala.
Manuela saiu da cama correndo, entrou na cozinha, avistou a porta da rua e a abriu sem barulho também, indicando que fugira para fora, mas voltou novamente para baixo da cama.
Sua família chegou na cozinha e percebeu a porta da rua aberta, todos constataram que ela foi para a rua e não deveria estar muito longe, devido aos remédios. Saíram juntos e combinaram de se espalhar para encontrá-la.
Assim que ela percebeu que suas vozes se afastaram, saiu de baixo da cama e caminhou até a cozinha. Primeiro, precisava de forças. Abriu a geladeira e vasculhou algo que pudesse comer sem estar envenenado de remédio. Encontrou alguns potes, um com arroz, outro com carne e vegetais. Puxou uma colher na gaveta do armário, misturou tudo num único pote e começou a comer. Só depois da segunda colherada, começou a perceber o quanto seu corpo necessitava de comida há muito tempo. Mas o momento era curto! Logo os outros estariam de volta.
Levou o pote de comida consigo mesma até o quarto dos seus pais. Levava colheradas de comida em sua boca enquanto olhava todo o entorno pensando onde poderia encontrar alguma pista sobre eles e seu passado. Vasculhou as gavetas da cômoda, mas só encontrou roupas. Abriu o armário, porta por porta, mas também só encontrou mais roupas e objetos antigos. Talvez houvesse algo em outro lugar. Pensou onde, porém não conseguia raciocinar. A pressão do momento não permitia, o tempo era curto e precisava sair da casa antes que voltassem, era sua única chance.
Voltou para o quarto, pegou sua mochila, o caderno e algumas roupas. Calçou os sapatos e correu para a cozinha. Fechou seu pote de comida, colocou na mochila também, junto com algumas frutas, garrafas de água e pães. Fechou a mochila, colocou nas costas, caminhando sorrateiramente para a porta. Espiou para ver se alguém vinha e saiu para a rua, mas a casa era circundada por mato e uma única estrada de chão. Sua família estava espalhada e poderia vir de qualquer lado. Não quis arriscar. Percebeu que a garagem estava aberta, certamente já tinham a procurado ali. Foi até lá, escondeu-se atrás do armário velho, abaixou-se e procurou acalmar-se, enquanto esperava que voltassem para dentro da casa. Mesmo se fechassem a garagem por fora, ela ainda poderia abrir por dentro ou sair pela janela velha que só abria e fechava por dentro mesmo.
Miriam Coelho |
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